No norte de Moçambique na Província de Cabo Delgado há todo um povo em sofrimento. Os consecutivos ataques que os povos Macondes e Macuas vêm sofrendo, por parte de terroristas disfarçados de fundamentalistas islâmicos, têm passado incólumes nacional e internacionalmente. Estes ataques, iniciados em 2017 têm, nos últimos meses, alcançado uma enorme intensidade e consequências sociais ainda por avaliar. Nesta altura, talvez um terço dos 1,5 milhões de habitantes da região esteja já em movimento, buscando refúgio na capital de Província, Pemba, ou, pelo menos, afastando-se dos territórios sob controlo dos grupos armados.
Esta enorme quantidade de refugiados internos, já muito pobre nas suas regiões de origem, está hoje negligenciada num dos mais pobres países do mundo, sem condições de sobrevivência, sem ajuda humanitária nem expectativas de que esta surja nos tempos mais próximos. A todos estes infortúnios junta-se, como no resto do mundo, o Covid-19, carências alimentares graves e a maior de todas as doenças, a desesperança.
Se as batalhas acontecem em Cabo Delgado é a partir de onde estamos que se ganhará a paz. Num momento em que o Natal nos anima a pensar num trio de viajantes que por estes dias, há muitos anos, se aproximava de Belém, é também tempo de pensarmos nestes povos que, neste recanto de África, celebram connosco o Natal.
A causa dos ataques a populações rurais indefesas é mais vasta do que as mãos que disparam as armas. Num mundo globalizado como o nosso devemos procurar a raiz da violência, não nas proximidades de onde jorra o sangue, mas na mente dos ideólogos do terrorismo ou na sede de poder e dinheiro de quem os alimenta. Neste caso as raízes são profundas e ultrapassam em muito as fronteiras da província de Cabo Delgado. Enunciemos algumas.
A causa dos ataques a populações indefesas só pode ser a desumanidade.
Numa região há muitos séculos habituada a ser um cruzamento de etnias, culturas e religiões não é o Islamismo que causa disrupções sociais. A convivência inter-religiosa e, até, a convivência das chamadas religiões do Livro – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – com formas religiosas animistas, é parte do quotidiano e das vivências nesta zona do mundo. Também não é a rejeição de um colonialismo extractivista que há muitos séculos vem retirando do local os bens que outros consideram importantes, vitais até, mas que não fazem parte do ciclo de vida dos habitantes locais. Para Macondes e Macuas pedras preciosas, marfim, madeiras exóticas, gás natural, petróleo, ou metais preciosos não podem, não devem ser a causa para matar indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, para os forçar a fugir das suas terras ancestrais e engrossar bairros de subúrbios de vilas e cidades da província.
Também não podem ser as questões políticas que há décadas causam separação e guerras entre partidários de um lado e irmãos-partidários do outro. Não pode ser a geopolítica global e a sua competição pelos bens terrenos, pelas matérias primas ou, tão simplesmente, pelo poder. Não pode, finalmente, ser a corrupção que a todos tenta e que muitos alcança. A causa dos ataques a populações indefesas só pode ser a desumanidade.
George Bernard Shaw (1856-1950), Nobel da literatura, crítico das religiões (e também um descrente do Natal), na sua obra “O discípulo do diabo” deixa-nos um aforisma, que partilho aqui, para reflexão: “O maior pecado para com os nossos semelhantes, não é odiá-los mas sim tratá-los com indiferença; é a essência da desumanidade”. Não podemos ser o que não queremos ser!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.