Como um amigo fala a outro amigo

Acredito que a experiência da amizade pode inspirar a missão da Escola e aquilo que desejamos proporcionar aos nossos alunos. Afinal, desejamos que a Escola possa ser um lugar privilegiado para que os alunos possam ser quem são.

Quando comecei a estudar para ser professora, lembro-me de que tinha uma cadeira que tinha o currículo como tema central. Falámos sobre o seu significado, as visões de vários autores e a forma como se distinguiam e distinguem diferentes tipos de currículo. Na altura, lembro-me de ter ficado surpreendida por estar contemplado na literatura (por isso, de um modo ‘mais formal’, diria) uma perspetiva sobre aquilo que se aprende com quem trabalha connosco; sobre a forma como se relacionam as pessoas que todos os dias andam na escola. Correndo o risco de não estar a ser absolutamente rigorosa, creio que se chamava o currículo oculto.

Nas últimas semanas, assistindo à ida de tantos alunos para casa, bem como ao seu regresso à escola, tenho feito memória desse ‘currículo’. Vendo a forma como os meus alunos se relacionam uns com os outros parece que esse ‘currículo’ se tem tornado mais visível e tenho confirmado como, realmente, a Escola cresce e aprende com a amizade.

Não falo apenas de fazermos amigos ao longo do nosso percurso de aprendizagem, ainda que, naturalmente, essa seja uma experiência que se deseja que todos os alunos tenham. É um aspeto central no processo de crescimento de qualquer um. Refiro-me, antes, ao que a verdadeira experiência da amizade traz e de como a Escola pode e deve beber dela.

Começava por olhar para a beleza da experiência entre dois amigos. Diante de um verdadeiro amigo, fazemos a experiência de podermos ser quem somos; fazemos a experiência de nos sentirmos acolhidos e de sermos contemplados, com as limitações que temos e com as fragilidades que trazemos; fazemos a experiência de cuidarmos, de forma ‘desinteressada’, e de sermos cuidados. Para além disso, o olhar de um amigo detém-se na simplicidade, nos pormenores e até naquilo que, aparentemente, podia ter menor utilidade ou valor.

Perante isto, não pretendo dizer que a Escola deva ou possa ocupar o lugar de um verdadeiro amigo. Mas acredito que a experiência da amizade pode inspirar a missão da Escola e aquilo que desejamos proporcionar aos nossos alunos. Afinal, desejamos que a Escola possa ser um lugar privilegiado para que os alunos possam ser quem são, diante de todos; que possam aprender a cuidar, ao mesmo tempo que percebem que é preciso dar espaço e deixar que haja quem cuide deles; que possam treinar o olhar para o detalhe, para aquilo que faz a diferença, para descobrir o valor que pode nascer de uma pequena ideia.

À luz da experiência da amizade, a Escola pode aprender a ser, efetivamente, um lugar em que se promove o encontro, em que há espaço para a liberdade e para a verdade, em que se valoriza o detalhe e em que se promove o cuidado.

Nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio fala da experiência da amizade e de como esta pode trazer luz à nossa relação com Deus e à forma como crescemos na Sua intimidade. Aí, diz que Deus nos procura e nos fala como um amigo fala a outro amigo. A ideia parece simples, mas, a mim, sempre me desarmou. Acho que estamos habituados a que estas coisas sejam trazidas no “sentido contrário”. Estamos habituados a que nos mostrem que a nossa relação com Deus traz luz à nossa vida. Traz, sem dúvida. E, por isso, claro que também traz luz às nossas relações e às nossas amizades. No entanto, sinto que nem sempre nos é óbvio tomar consciência de que aquilo que vamos vivendo também pode trazer luz à nossa relação com Deus. Neste caso, as experiências de amizade que temos na nossa vida podem ajudar-nos a descobrir a simplicidade com que o Senhor se quer relacionar connosco.

O salto até Santo Inácio pareceu descabido, não foi? Deem-me só mais um bocadinho para tentar explicar. A Escola deve acompanhar os alunos no crescimento que fazem. Deseja-se que os alunos aprendam e desenvolvam competências que possam pôr ao serviço, que levem consigo para as diferentes dimensões das suas vidas, incluindo para as suas amizades, claro. Por isso, a amizade pode crescer com a Escola e com aquilo que aqui se aprende.

No entanto, tem crescido em mim a convicção de que a Escola também pode crescer com amizade. No fundo, acredito que a experiência de verdadeira amizade – daquela que vivemos com quem verdadeiramente nos descansa – pode ajudar a que a missão da Escola seja mais plena. À luz da experiência da amizade, a Escola pode aprender a ser, efetivamente, um lugar em que se promove o encontro, em que há espaço para a liberdade e para a verdade, em que se valoriza o detalhe e em que se promove o cuidado. Não por serem boas características extra para um espaço de aprendizagem e crescimento, mas antes por serem, na verdade, condições essenciais e, arrisco, quase necessárias se apontamos, verdadeiramente, ao crescimento integral de cada aluno.

Pode só soar bonito, mas quando olho para o meu caminho, estou certa de que é mesmo concreto. Sei que a professora que sou hoje também se deve às minhas amizades; à Graça que é ter pessoas na minha vida que criam espaço para que, diante delas, possa ser eu, que acolhem sempre e que cuidam de mim no mais pequeno detalhe. São pessoas que me mostram que Deus não perde uma oportunidade de me visitar. Enquanto professora, sinto que a minha missão também deve contribuir para que os meus alunos descubram o mesmo.

Por tudo aquilo que a experiência da amizade já trouxe e traz à minha vida, os meus amigos inspiram aquilo que proponho aos meus alunos sempre que entro numa sala. E, por isso, dou graças pela vida de cada um deles.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.