Na nossa mesa está um livro com o título O Mundo não tem de ser assim. É uma biografia de um homem que os nossos bisnetos conhecerão nos livros de História. De um português que ganhou um lugar no futuro (isto, se o mundo durar até lá e a humanidade não perder o seu prazo de validade). Já algumas vezes dei por mim a passar pelo livro e a murmurar “Pois não! Pois não!”.
Estamos há quase 18 meses sob um manto de pandemia global, um tempo que nos define agora e redefinirá as nossas vidas futuras. Já vivemos encerrados com a nossa célula familiar e reaprendemos a ser um “nós” em bolha. Já saímos e voltámos para casa. Já envelhecemos e vimos os outros percorrer o mesmo tempo perdido. Já desperdiçámos um período de vida dos outros (sobrinhos, tios, primos, amigos), um tempo que não volta. Já hesitámos na rua perante um rosto que parecia de alguém conhecido e que reconhecemos apenas pela voz atrás de uma máscara social. Já sentimos que os ecrãs não são espaços sociais de troca que queiramos trocar pelas salas de aula do passado.
Podia ser um mundo sem pobres, se aprendêssemos a tirar apenas o que precisamos e a passar o prato aos que também têm fome. Se soubéssemos abdicar das segundas casas, dos iates, das viagens ao espaço, dos armários cheios de roupa e sapatos, dos gadgets de época e da vaidade sem tempo.
Neste entretanto, entre o normal passado e o ‘novo normal’ futuro, já fomos alertados para a pandemia da desigualdade social, para a pandemia da indiferença, para a pandemia da solidão, para a pandemia do nacionalismo, para a pandemia do egoísmo social. Nestes 18 meses, vimos gente a morrer por falta de oxigénio, falta de vacinas, falta de noção, falta de jeito para escolher os seus líderes políticos, falta de investimento em ciência, falta de alimentos e falta de recursos mínimos na saúde pública. Temos hoje mais numerosas, e também mais fortes, fronteiras do que em 2019, num mundo em que a distância social não pára de ser aclamada como solução. Temos no mundo mais desigualdade Norte-Sul e Este-Oeste e todas as outras, que as geografias económicas sublinham nas estatísticas. Temos linhas que nos separam, apps que fiscalizam a nossa separação e passaportes sanitários que nos abrem cancelas para podermos sair (ou entrar) mas que continuam a ter um “Direito de Admissão” colado nos muros à nossa volta. Temos visto rockets a matar pessoas e bombas a devolver a matança (ou vice-versa). Temos sabido que há gente a matar em nome de um Deus que nunca o pediu e gente a morrer, muita gente a morrer, em nome do silêncio cúmplice de todos nós. Quando penso no Livro, nos Livros, tenho a certeza de que “”. Está escrito, há milhares de anos, assim soubéramos nós ler o futuro nos escritos do passado.
Num mundo que nunca foi tão pequeno como o de hoje, em que a informação sobre tudo e coisa nenhuma está disponível à distância de um clique, ainda não ganhámos, afinal, consciência de que “O Mundo não tem que ser assim!”.
Podia ser um mundo sem fronteiras, onde migrar se fizesse por vontade e não por necessidade, onde migrar fosse um direito e não uma transgressão. Podia. Mas só se desnacionalizássemos e descolonizássemos a nossa epistemologia política. Podia ser um mundo sem pobres, se aprendêssemos a tirar apenas o que precisamos e a passar o prato aos que também têm fome. Se soubéssemos abdicar das segundas casas, dos iates, das viagens ao espaço, dos armários cheios de roupa e sapatos, dos gadgets de época e da vaidade sem tempo. Podia, se desvalorizássemos o dinheiro ao seu valor real e valorizássemos o ser ao seu valor potencial. Podia ser um mundo mais limpo, com menos plástico e mais natureza se voltássemos ao quintal e à feira semanal e acreditássemos na economia circular. Podia. Se o modelo capitalista em que vivemos pudesse ser repensado com o que hoje sabemos sobre os modelos políticos em que temos vivido. Podia ser um mundo mais educado onde o “por favor”, o “com licença” e o “obrigado” fizessem parte da língua comum e assim se evitariam quezílias e atritos pessoais. Podia, se em casa integrássemos a educação como prioridade e fizéssemos da nossa convivência diária um Reality Show de gente séria e humana. Podia ser um mundo mais justo se as patentes fossem apenas o pagamento do esforço dos cientistas e dos gastos dos laboratórios em vez de serem para pagar os diamantes de sangue e os excessos de capitalização bolsista. Podia, se perante a pandemia repensássemos os apoios à Ciência, o estatuto dos bolseiros, os apoios a fundo perdido, as isenções fiscais e tantas cadeias de produção de conhecimento que estão desatualizadas face ao que sabemos hoje.
Num mundo que nunca foi tão pequeno como o de hoje, em que a informação sobre tudo e coisa nenhuma está disponível à distância de um clique, ainda não ganhámos, afinal, consciência de que “O Mundo não tem que ser assim!”. Um dia depois da primeira viagem privada ao espaço exterior seria talvez tempo de retomarmos a viagem ao nosso espaço interior e pôr mãos à obra para construirmos um Mundo assim para o melhor. Fica o desejo, fica a vontade. Vamos?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.