Como ser a geração do meio?

Crónica de como ser criança nos anos 70 nos torna empáticos com os mais velhos e os mais novos.

Quando eu era criança havia muitos como eu. Tantos que, para fazer equipas num jogo de futebol de rua, tínhamos a noção de que escolhíamos os melhores jogadores primeiro e só depois os outros, sendo que sobrava quase sempre alguém, quase sempre os mais novos ou os mais pequenos, que faziam de público e apanhavam bolas e sonhavam ser também escolhidos. Quando eu nasci, nos anos 70 do século passado, nasciam, em média 175.000 crianças, anualmente, em Portugal. As minhas turmas da primária ao secundário tinham mais de 30 alunos e havia tantas que o alfabeto, por vezes, quase não chegava para as nomear. Na última década completa para a qual temos dados (2010-2019) nasceram pouco mais de 88.500 crianças em média em cada ano, isto é, quase metade do valor da década de 1970-1979. Com a chegada das meninas aos jogos de futebol de rua, hoje, ainda conseguimos fazer duas equipas, mas já não temos, nem apanha bolas, nem público. O mundo mudou e o número de crianças minguou.

Na última década completa para a qual temos dados (2010-2019) nasceram pouco mais de 88.500 crianças em média em cada ano, isto é, quase metade do valor da década de 1970-1979.

Nos anos 70 do século passado, não havia muitos velhos embora nós não o percebêssemos. Poucos, muito poucos, portugueses viviam vidas longas e com qualidade, o que geralmente quer dizer, com saúde e bem estar económico e social. A esperança média de vida à nascença era, em 1970, de 67,1 anos (64 para os homens e 70,3 para as mulheres). Em 2019, a esperança média de vida à nascença era de 81,2 anos (78,3 para os homens e 83,7 para as mulheres).

Se nos anos 70 do século XX, éramos um país jovem, hoje, já não temos assim tantos jovens no país. O que nos surpreende, na análise de qualquer pirâmide etária portuguesa, é o seu nome ser uma mera memória de tempos idos. Hoje, temos uma imagem da população com uma ogiva em cima de um cilindro, da pirâmide resta o nome. Temos mais de 100.000 residentes com mais de 90 anos. Destes, alguns milhares, são velhos centenários que subiram todos os degraus da pirâmide até ao topo. Em 2022, viviam em Portugal 2.484.783 pessoas com mais de 65 anos e 1.354.417 com 14 anos ou menos. Em 1970, o Índice de Envelhecimento (relação existente entre o número de idosos e a população jovem) era de 32,9 e em 2022 de 183,5. Mais velhos, menos jovens. Esta evolução rápida da nossa demografia coloca-nos entre os países mais envelhecidos do mundo. Vivemos mais, por via das mudanças que a sociedade conheceu nas últimas décadas e que vão, da alimentação à saúde, passando, claro, pela educação. Somos mais os que vivemos mais!

Temos mais de 100.000 residentes com mais de 90 anos. Destes, alguns milhares, são velhos centenários que subiram todos os degraus da pirâmide até ao topo.

O desafio que temos pela frente, nos anos e décadas que aí vêm, é como preparar um futuro com uma vida mais longeva e, ao mesmo tempo, aumentar a qualidade de vida de todos. Na ausência de grandes catástrofes ou doenças pandémicas, no futuro seremos um país de velhos cheios de futuro. Esse futuro, porém, depende de nós e de como o quisermos construir.

Não vou hoje falar de migrações, e da importância que já têm hoje os imigrantes na nossa sociedade, e de como essa importância tende a crescer no futuro. Creio que já todos temos consciência das razões sociais, económicas e, sobretudo, humanas, para acolhermos bem quem nos escolheu para aqui viver. Prefiro hoje falar do espaço público, dos serviços de que necessitaremos no futuro, das alterações societais que importa fazer para vivermos mais tempo e sermos parte ativa da vida conjunta de todos. Sem ir muito longe num tema de grande complexidade: como estamos a formar os técnicos de geriatria do futuro (os técnicos de saúde, os técnicos do cuidar, etc.)? Como estamos a cuidar para ter espaços de mobilidade suave para os mais velhos em casa, nos transportes, nos espaços públicos? Como estamos a cuidar do fortalecimento dos laços entre gerações que nos permitam ser filhos e netos e avós em simultâneo? Como estamos a pensar no futuro da segurança social e do serviço nacional de saúde? Quem vamos incluir, quem vamos excluir? A quem vamos deixar a dívida coletiva que temos deixado o Estado contrair em nosso nome? O que vamos fazer dos estádios e dos pavilhões, das piscinas e das rotundas que fomos acumulando ao longo do tempo? O que vamos fazer das aldeias e vilas despovoadas por uma centralização e litoralização sem sentido? Vamos deixar morrer todo este património material e imaterial?

O tema do envelhecimento demográfico em Portugal é altamente complexo, mas temos que, inevitavelmente, começar a preparar o futuro. O que estão a fazer países com índices de envelhecimento elevado como são o Japão, a Itália ou a Finlândia? Vários Estados-membros da União Europeia têm ministérios dedicados à demografia, não para criarem mais um cargo, mas porque já perceberam a dimensão política desta área e a sua importância sociológica. E nós? Por cá, falta fazer quase tudo. Todos temos que contribuir para esta mudança de paradigma de deixar de pensar uma sociedade em pirâmide e passar a antecipar o momento em que ser velho é ser alguém que atravessou a linha do tempo e resolveu ficar! Como escreveu Torga, no seu Diário, em Coimbra, no dia 1 de maio de 1974: «A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez» .

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.