Como educar uma criança com a ajuda de My Fair Lady

Educar dá trabalho e não é preciso pertencer a nenhuma classe social especifica para saber estar à mesa.

Há um livro, que é uma peça de teatro de Bernard Shaw, e um musical realizado por George Cukor, que todos devíamos ler ou ver antes de termos filhos. O livro chama-se Pygmalion e baseia-se no mito grego com o mesmo nome, o do rei que faz uma estátua perfeita e se apaixona por ela; e o filme é My Fair Lady com Audrey Hepburn no papel principal.

Esqueçamos o machismo que é a aposta entre dois cavalheiros de transformar uma simples vendedora de flores numa duquesa; esqueçamos o patriarcado e a luta de classes – afinal a peça de teatro é de 1912 e o filme de 1956 –, e foquemo-nos na educação, no desafio de transformar uma mulher iletrada numa mulher culta. Não é isso que queremos para os nossos filhos?

Gosto de observar a maneira como as pessoas comem. Lembro-me que Marçal Grilo, quando ministro da Educação e, anos mais tarde, quando administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, fazia pequenos-almoços com jornalistas. Eram momentos de trabalho e de partilha de informação.

É bem mais fácil sentarmo-nos para uma conferência de imprensa do que estar num pequeno-almoço, onde temos de estar atentos ao que nos dizem enquanto trincamos um croissant. Mas o grupo de jornalistas, a maioria mulheres era irrepreensível. Ninguém esbracejava, sorvia com barulho ou falava com a boca cheia. Eram momentos de alguma cerimónia e elegância, fosse qual fosse o tema, que, por vezes, era polémico.

É bem mais fácil sentarmo-nos para uma conferência de imprensa do que estar num pequeno-almoço, onde temos de estar atentos ao que nos dizem enquanto trincamos um croissant. Mas o grupo de jornalistas, a maioria mulheres era irrepreensível. Ninguém esbracejava, sorvia com barulho ou falava com a boca cheia. Eram momentos de alguma cerimónia e elegância, fosse qual fosse o tema, que, por vezes, era polémico.

Hoje, mais de 20 anos depois, continuo a partilhar mesas com outros camaradas de profissão, governantes, directores de empresas ou de escolas, empresários e investigadores. E a diferença é abissal. Há quem levante os braços ao nível das orelhas para cortar afincadamente um pedaço de carne, há quem não saiba para que serve um guardanapo ou como se usam os talheres quando se confrontam com mais do que um conjunto. E aquela tacinha com água quente e uma rodela de limão, é um chá?

Em Pygmalion, o professor de fonética Henry Higgins ensina Eliza Doolitlle a abandonar o dialecto londrino, cockney, para falar correctamente. De regresso às minhas mesas de trabalho, há quem diga, como os garotos pequenos, “não gosto”. Mais: “Não quero!” Assim, sem um “obrigado” cerimonioso no final.

Tudo isto se aprende em casa. Tal como Henry Higgins, a minha avó corrigia-me a gramática: “Não é ‘fizestes’, é ‘fizeste’.” Tal como Eliza Doolittle, obrigava-me a percorrer o corredor de casa com um livro na cabeça até caminhar direita, sem o deixar cair. Não sei se foi no filme que se inspirou ou nos múltiplos manuais de etiqueta e boas maneiras que tinha em casa, mas quando comecei a sentar-me à mesa com um ar demasiado descontraído e a pôr um joelho em cima da cadeira (a adolescência faz-nos destas coisas), o livro passou a fazer-me companhia às horas da refeição, em cima da minha cabeça (o que podia dar azo a alguns acidentes e discussões).

Tudo isto se aprende em casa. Tal como Henry Higgins, a minha avó corrigia-me a gramática: “Não é ‘fizestes’, é ‘fizeste’.” Tal como Eliza Doolittle, obrigava-me a percorrer o corredor de casa com um livro na cabeça até caminhar direita, sem o deixar cair.

Os livros também ajudaram os meus filhos a não abrir os braços quando começaram a aprender a comer. Não era um castigo, mas um desafio, um jogo: “Quem consegue terminar o prato sem deixar cair os livros de debaixo dos braços?”

Educar dá trabalho e não é preciso pertencer a nenhuma classe social especifica para saber estar à mesa. Há coisas que qualquer um ouviu, fosse a sua mãe costureira ou a sua avó arquitecta: “Não se fala com a boca cheia, senta-te direito, não se deixa nada no prato que há meninos em África que morrer à fome.”

Hoje, estamos imunes à fome no mundo, tal como estamos imunes a tudo o que se passa à nossa volta. Vejo nos restaurantes, seja num centro comercial ou num resort de luxo, os miúdos mal sentados, a segurar no garfo com a mão fechada num murro e os olhos focados num ecrã encostado ao copo de refrigerante, que observam com o queixo pousado na mesa. Não é preciso dizer-lhes para não falarem com a boca cheia porque não falam, mas mastigam com a boca aberta.

Já sabemos como são os finais de Hollywood, o professor de fonética apaixona-se pela vendedora de flores e é correspondido; mas na peça de Bernard Shaw, a rapariga trapalhona transforma-se numa mulher confiante e independente. É isso que queremos que os nossos filhos sejam: confiantes e independentes e, parece que não, mas saber falar e saber estar são importantes passos para conquistarem o seu lugar no mundo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.