Muito se tem falado e escrito sobre os acontecimentos dos últimos dias, mas quando a governação dá sinais de exaustão e de insustentabilidade com o caos na Saúde, na Educação e na Justiça, com uma inflação que teima em manter-se e os juros a dificultarem os orçamentos das famílias e das empresas, fomos surpreendidos por buscas da polícia ao Palácio de São Bento, onde foram encontradas avultadas somas de dinheiro vivo escondido em gabinetes, algo nunca visto!
O comportamento e as escutas que, entretanto, se conhecem retratam uma ligeireza ímpar no tratamento de assuntos de Estado. Já conhecíamos, desde há longos meses, a informalidade dos despachos por Whatsapp e no meio deste turbilhão vemos personagens como o agora ex-ministro das infraestruturas a quem é, pasme-se, apreendida droga em buscas domiciliárias.
O cenário é escuro, muito escuro, todavia julgo serem prematuras as notícias que dão conta de uma morte do regime democrático no qual vivemos há quase 50 anos.
É sempre oportuno voltar à velha e tão batida citação de Winston Churchill sobre os méritos deste sistema segundo a qual a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras. Não podemos, nem devemos, tal como no passado, deixar que algumas maçãs podres possam contaminar as restantes. Mas, vendo o posicionamento dos candidatos já assumidos, afigura-se uma disputa eleitoral intensa. E do que já vimos, há um sentimento crescente que me preocupa: a utilização do medo em contexto eleitoral.
O medo não pode ser a arma política que vai levar a São Bento o próximo primeiro-ministro. A geometria e a aritmética parlamentar não podem e não devem ser o alfa e o ómega destas eleições. O acenar com extremismo tanto à direita, como à esquerda, como começamos a ver na estruturação das mensagens políticas dos principais partidos, afeta aquilo que deve estar no centro do debate político: as pessoas e a visão de país. Mas afinal que visão têm para o País estes candidatos? Que sociedade queremos construir dos escombros de onde partimos? Como vamos atingir esses objetivos?
Mas afinal que visão têm para o País estes candidatos? Que sociedade queremos construir dos escombros de onde partimos? Como vamos atingir esses objetivos?
Em tempos manchados pela mediocridade, tanto de políticos como de políticas públicas, o que se exige é moderação e ponderação e não a radicalização e a conjetura de cenários de medo. Caso contrário, apenas estaremos a capitalizar o voto de protesto e a inflamar o discurso populista que divide, que subtrai e que não promove aquilo que deve ser a construção de uma sociedade solidária e pluralista onde as famílias e as comunidades sejam valorizadas.
A corrupção tolerada é uma chaga incrustada na nossa sociedade. Vai da “cunha” ao pequeno jeitinho, ao passar à frente, aos almoços e jantares até à alta corrupção que manda abaixo governos e deixa ex-primeiros-ministros, ex-ministros e ex-secretários de Estado a contas com a Justiça. Mas não será possível combater a corrupção na política e na administração pública? É por demais evidente que nem todos os políticos e funcionários são corruptos, muito longe disso. Mas do fenómeno da corrupção não é dissociável a perceção que as pessoas e a sociedade têm a cada momento sobre a sua existência.
Não nos podemos resignar ao estado a que chegamos. E há um caminho a percorrer.
Não nos podemos resignar ao estado a que chegamos. E há um caminho a percorrer.
Por um lado, pelo maior escrutínio dos titulares de cargos políticos, por uma cultura de discussão pública da sua visão e do respetivo posicionamento e, por outro lado, pela constituição de um corpo sólido de quadros na Administração pública que não sejam permeáveis à pressão política. Por uma verdadeira cultura de transparência.
Apesar dos avanços com a criação da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP), a verdade é que a maioria das nomeações dos dirigentes da nossa Administração continua a ser em regime de substituição, um mecanismo que permite preencher temporariamente cargos públicos que estejam vagos. Em alguns casos, os lugares estão, de facto, vazios, no entanto não raras são as situações em que os responsáveis de serviços e organismos do Estado são dispensados para logo a seguir os substituir ao abrigo deste regime que deveria ser de exceção.
O caminho é longo e estreito mas os tempos que vivemos exigem-nos seriedade, sensibilidade e bom senso. Num sentido cristão, à luz da doutrina social da Igreja, os tempos que vivemos exigem caridade e verdade. Tal como nos apresentou o Papa Bento XVI na Encíclica Caritas in Veritate, sobre a importância de integrar os valores da caridade e da verdade em todas as dimensões da vida, incluindo nas questões sociais. Onde nos faz acreditar numa sociedade, “onde cada um possa encontrar o bem próprio, aderindo ao projeto que Deus tem para ele a fim de o realizar plenamente: com efeito, é em tal projeto que encontra a verdade sobre si mesmo e, aderindo a ela, torna-se livre (cf. Jo 8, 32). Por isso, defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade.”
“Por isso, defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade.”
E onde também nos dá o sentido de bem comum que “Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidades reais. Este é o caminho institucional — podemos mesmo dizer político — da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai diretamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político.”
Mais do que um documento teológico, esta encíclica é um verdadeiro tratado sobre a construção de uma sociedade mais justa e solidária onde a caridade e a verdade tornam-se fundamentos angulares. O desenvolvimento humano integral emerge como um objetivo central que transcende a mera busca pelo crescimento económico. Os cidadãos, organizações e governos reconhecem a responsabilidade social que partilham e comprometem-se a promover o bem comum e a justiça social. Essa sociedade compreende que a economia deve ser um instrumento ao serviço da pessoa humana, repudiando a visão utilitarista que subestima o valor intrínseco da vida. Nas relações sociais, a ética é prioritária, condenando qualquer forma de corrupção e incentivando práticas baseadas na verdade e na integridade.
Essa sociedade compreende que a economia deve ser um instrumento ao serviço da pessoa humana, repudiando a visão utilitarista que subestima o valor intrínseco da vida.
No contexto global, esta sociedade encara os desafios da globalização com uma mentalidade solidária. Valoriza a diversidade cultural e busca uma globalização que respeite e preserve as identidades locais. Ao mesmo tempo, reconhece a interdependência das nações e trabalha para uma distribuição justa dos recursos. Comprometida com a sustentabilidade, adota práticas que respeitam o meio ambiente, promovendo o equilíbrio entre o desenvolvimento económico e a preservação dos recursos naturais para as gerações futuras. O trabalho é considerado um meio essencial para promover a dignidade humana, sendo garantido a todos de maneira justa e respeitosa. Nessa sociedade, os princípios cristãos da Caritas in Veritate são os alicerces que moldam uma comunidade onde a caridade, a verdade e a justiça se entrelaçam para criar um tecido social robusto e sustentável.
Contra o medo que nos querem impor não seria preferível olharmos para Portugal com caridade e verdade?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.