A carta de um condenado à morte

“A justiça nunca se alcança com a morte de um ser humano” (Papa Francisco)

Reencontrei há pouco tempo, no meio de muitos papéis e da azáfama própria de uma mudança de casa, a última carta que recebi do John (nome fictício), um condenado à morte, escrita no Natal de 2005. Não tinha pensado dedicar o meu primeiro artigo do Ponto SJ a este tema, apesar da sua inegável importância e atualidade. Digamos que, através desta carta, ele veio ter comigo.

Reli com emoção as palavras do John, cheias de esperança e de fé: “Minha querida irmã em Cristo, sou apenas um mero e pobre pecador, uma pessoa fisicamente condenada. (…) Nada é difícil através da oração, é a chave para todas as portas”. Detive-me na sua caligrafia apressada e no desenho minucioso de uma flor cor-de-rosa e uma Bíblia. Este desenho representava, na perfeição, aquilo que lhe dava esperança e alegria, no escuro lugar onde se encontrava. Agradecia também a companhia das minhas palavras.

 

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"A prisão não é um jardim de rosas", escrevia John

 

Correspondemo-nos durante alguns meses. As cartas chegavam do corredor da morte de uma prisão de segurança máxima, algures na Zâmbia. Apesar de não existirem registos de execuções na Zâmbia desde 1997, este é um dos países onde a pena de morte ainda não foi abolida, existindo condenados a viver numa espécie de limbo, entre a vida e a morte, na incerteza da execução da sentença.

Continuo a indignar-me com esta pena capital, que incoerentemente pune um crime cometendo um outro crime, intencional e a frio. E logo o maior de todos os crimes, tirar uma vida humana.

No corredor da morte, todo o percurso até à eventual execução é de grande sofrimento e ansiedade, tortuoso e incerto caminho que é já por si um terrível castigo. Nalguns casos, a única esperança reside na possibilidade de comutação da pena de morte em sentença perpétua. Com a agravante de muitos detidos se encontrarem em prisões onde são mantidos em condições desumanas e degradantes.

John partilhava uma pequena cela com outro companheiro. “A prisão não é um jardim de rosas” – dizia. “Surgem incertezas, umas após outras. Estamos a passar por uma série de situações. Temos necessidades básicas. Falta o banho, toalhas, sabonete, escova e pasta de dentes, desodorizante. Falta comida. Passamos dias sem comer e por causa disso é fácil contrair doenças”. Através das suas palavras, pude escutar o ruído das vozes, o metal das grades, o tempo pesado, os cheiros, a violência, as saudades e preocupação com a família: “Estou a viver uma calamidade com o meu encarceramento. Eu era o ganha-pão da minha família. Por favor, reza pela minha família. Estão a passar tempos muito duros”.

A vulnerabilidade de John e do seu companheiro de cela era evidente, assim como a de tantas pessoas aprisionadas a uma justiça penal fechada à esperança de reinserção na sociedade. Como referiu o Papa Francisco em mensagem enviada ao VI Congresso Mundial contra a Pena de Morte: “Não existe pena válida sem esperança! Uma pena fechada em si mesma, que não dá lugar à esperança, é uma tortura, não é uma pena”.

De acordo com os últimos dados divulgados pela Amnistia Internacional (AI), mais de dois terços dos países do mundo (141) aboliram a pena de morte, na lei ou na prática. Mas são muitos ainda (57) a aplicá-la. Em 2016, 18.848 pessoas aguardavam a execução da sentença, em corredores da morte. No mesmo ano, pelo menos 1032 pessoas foram executadas em 23 países, sem contar com a China (país onde este tema é considerado um segredo de Estado, estimando-se que tenham ocorrido milhares de execuções).

Além da China, a maior parte das execuções em 2016 foram levadas a cabo no Irão, Arábia Saudita, Iraque e Paquistão, tendo sido utilizados métodos de execução variados como decapitação, enforcamento, injeção letal, pelotão de fuzilamento, entre outros.

Um argumento frequentemente usado pelos defensores da pena capital consiste no facto de a mesma ter alegadamente um efeito dissuasor da prática de crimes violentos. Todavia, não está provado que a aplicação da pena de morte diminui a criminalidade. Antes pelo contrário. Diversos estudos demonstram que muitos países abolicionistas apresentam baixas taxas de criminalidade. Tal é o caso do nosso país, o primeiro país europeu a abolir a pena de morte para todos os crimes civis em 1867 e atualmente o terceiro país mais pacífico do mundo, de acordo com o Índice Global de Paz 2017. No Canadá, após a abolição da pena capital, a criminalidade chegou mesmo a decair 44%, quase para metade (dados recolhidos entre 1975 e 2003), de acordo com informação divulgada pela AI.

Por outro lado, observamos como a pena de morte parece ser usada por alguns regimes como instrumento político disfarçado de justiça, usando o sistema judicial. Recentemente, vimos como países que não a aplicavam, como a Turquia, pensam reintroduzi-la.

Sabemos que a justiça dos homens é falível. Todos os anos são executadas pessoas inocentes, vindo a provar-se posteriormente que não cometeram os crimes pelos quais foram acusadas e condenadas. Um estudo publicado em 2014 na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences, concluiu que um em cada vinte e cinco condenados à morte, nos Estados Unidos da América, são inocentes. Esta estimativa (com dados de 1973 a 2004) foi considerada pelos autores como conservadora. Nos casos de execução da sentença de morte, o erro judicial é completamente irremediável.

Como pode assim a humanidade ter a pretensão de fazer justiça, hierarquizando a vida, julgando e decidindo qual a que tem ou não tem valor? A “hierarquização da vida”, não apenas nesta perspectiva, mas noutras também, leva-nos a temas que estão hoje na ordem do dia. Quem decide e como, com que autoridade e critério, qual a vida que tem dignidade para ser vivida, qual a vida que merece a pena viver!? Muitas vezes, no meio da dor e desespero, a morte pode surgir como um caminho possível, uma espécie de expiação ou solução de fim de linha. Mas, na verdade, a morte jamais faz justiça. E “a justiça nunca se alcança pela morte de um ser humano”, como referiu o Papa Francisco, no passado ano, numa carta enviada ao Presidente da Comissão Internacional Contra a Pena de Morte.

Decorreram cerca de quinze anos após a última carta de John. Mas a sua voz continua a ressoar em mim, livre e poderosamente viva, reforçando a minha crença na inviolabilidade da vida humana, desde a sua conceção até à morte natural.

Num dado momento, os nossos caminhos cruzaram-se e permanecemos ligados. Pois somos uma mesma humanidade. O John resumia bem este elo, na assinatura das suas cartas, sempre com três palavras bem desenhadas, no papel e no mundo, “Yours in Christ“.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.