Partilhei no meu artigo anterior que as reflexões que irei procurar transmitir em forma de texto através deste Ponto SJ terão por mote a urgência em pensar e agir com vista à busca e (re)encontro de uma educação transformadora no sentido da construção de sociedades mais justas e pacíficas. Como tal, neste segundo artigo, regresso ao “local do crime”: Colegio Mayor Loyola, Madrid, julho de 2012, semana de trabalho da Global Ignatian Advocacy Network para o Direito a uma Educação de Qualidade [1].
Desinquietados pela intervenção inicial do costa-riquenho Vernor Muñoz [2] – que fez questão de nos demonstrar e deixar bem claro que não é qualquer educação que tem o poder de transformar as sociedades no sentido da construção de um mundo mais livre, mais justo, mais equitativo e mais solidário, e que aprofundar e concretizar o “para quê” dos processos educativos é fundamental, se não queremos correr o risco de caminhar exatamente no sentido contrário – e inspirados por um conjunto de reações e outras intervenções dos vários membros do grupo de vinte e duas pessoas provenientes de quatro continentes, representando organizações, universidades e instituições transnacionais da Companhia de Jesus, metemos mãos-à-obra. O desafio e principal fim do nosso encontro era – nada mais, nada menos – redigir um documento de posicionamento comum sobre o direito à educação. Obviamente que um dos temas fortes foi o que será, afinal, esta educação transformadora, à qual ligámos a ideia da qualidade que procuramos.
Neste (exigente e nem sempre consensual) processo de reflexão, debate e redação coletiva, concluímos que, se é essencial a aquisição de conhecimentos e capacidades, quando falamos dessa educação de qualidade, que é transformadora, temos necessariamente de considerar igualmente essencial a “formação humana com um sentido e visão antropológica solidária. A educação deve semear a solidariedade, a interculturalidade, o sentido cidadão de um “nós” inclusivo no qual a realização do “eu” assume afetiva e espiritualmente a realização de todos os outros e a defesa dos seus direitos. Deve cultivar inicialmente a disposição para contribuir – em termos de direitos e deveres – para o desenvolvimento e cumprimento da Constituição e das leis da nação, assim como para o funcionamento satisfatório das instituições públicas indispensáveis para o desenvolvimento adequado da sociedade. É também importante o desenvolvimento da liberdade pessoal, do pensamento crítico e da criatividade, capazes de confrontar as forças sociais de submissão e manipulação. A solidariedade, a liberdade e a responsabilidade social e ecológica levam-nos a participar nas muitas associações livremente criadas pela sociedade civil para enriquecer a diversidade social e tornar possível o desenvolvimento responsável das pessoas” (Documento de Posicionamento da Global Ignatian Advocacy Network para o Direito a uma Educação de Qualidade, n.º 30 [3]).
Ou seja…
… a centralidade do humano: do ser, do sentido, da relação e da realização enquanto indissociável dessa relação;
… a educação como local privilegiado de sementeira de três valores essenciais: a solidariedade, a interculturalidade, a inclusão;
… a necessidade de se começar pela contribuição para com as regras e instituições democraticamente estabelecidas;
… mas também a importância de se continuar esse começo, trabalhando a capacidade de confronto com as forças sociais de submissão e manipulação, através do desenvolvimento da liberdade pessoal, do pensamento crítico e da criatividade;
… o essencial da participação e da corresponsabilidade social, exercidas em solidariedade e liberdade.
Não é, por certo, um roteiro perfeito; hoje, quase seis anos depois, talvez a questão ecológica e da necessidade de se educar para uma visão holística, integradora, relacional e integral da Criação merecesse um destaque maior – só para citar um exemplo. Mas também nunca o pretendeu ser. Pretendeu (e continua a pretender) ser uma contribuição, com a força da construção e apropriação coletiva, para o debate que leva à ação: um apoio desafiador para as pessoas e coletivos, companheiros nesta busca pela educação de qualidade que transforma; um texto questionador e provocador para quem não pensa na educação desta forma.
Com este intuito em mente, gostaria de salientar dois pontos, não tanto por valorizá-los mais ou menos que os outros, mas por considerar que são menos focados (e muitas vezes esquecidos) em muitos dos processos educativos: a necessidade de se aprofundar a discussão sobre os entendimentos e significados dados aos valores e conceitos fundamentais; a importância de se educar para a capacidade de confrontar as forças de submissão e manipulação que se infiltram na vida das pessoas e da sociedade. Espero vir a debruçar-me sobre eles com mais pormenor em futuros artigos.
Por agora, termino voltando ao documento de posicionamento comum: “A educação serve para transformar as pessoas e para facilitar a sua realização humana. Ao mesmo tempo, é a chave para a construção da sociedade que desejamos. (…) Necessitamos de transformações profundas em cada um dos nossos países para superar a pobreza e construir sociedades democráticas, justas, plurais e inclusivas, com verdadeiras oportunidades para desenvolver a liberdade de cada um. (…) Por isso, o direito à educação de qualidade é assumido desde a perspetiva dos pobres, para que a transformação radical da escola pobre para os pobres lhes permita serem sujeitos ativos de transformação social.” (Documento de Posicionamento da Global Ignatian Advocacy Network para o Direito a uma Educação de Qualidade, n.º 33 e 34 [4])
A procura incessante desta educação transformadora e do direito de participação de todas e de todos nesta nova educação constitui uma responsabilidade pessoal e coletiva que todas e todos, dentro do nosso livre arbítrio, podemos, ou não, assumir.
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[1] Para saber mais: https://edujesuit.org/our-team/
[2] Pedagogo, escritor e ativista. Relator Especial das Nações Unidas para o Direito à Educação entre 2004 e 2010.
[3] Disponível em: https://edujesuit.org/es/es-un-derecho/
[4] Disponível em: https://edujesuit.org/es/es-un-derecho/
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.