Lembro-me de, há muitos anos, uma grande amiga minha do mundo associativo me olhar com ar de espanto e perguntar: Tu tens amigos de direita?????
Ou de uma cientista da Champalimaud declarar que, ao contrário do que eu lhe havia contado, ela não tinha nem um amigo avesso a vacinas. Seria incapaz de se dar com alguém tão diferente de si.
Este fim-de-semana, esteve cá em casa de visita a M., uma querida amiga minha de há mais de três décadas, com o seu filho. E como sempre acontece quando estamos juntas, divergimos em múltiplas coisas e fomo-nos confrontando em todas as conversas: sobre o Bill Gates e a Organização Mundial de Saúde, sobre o poder da intuição, sobre o podcast “Extremamente Desagradável”, sobre pedagogia e maternidade. Eu, muito racional; ela, crente no poder de alinhar a alma com a força do universo e assim cocriar, de alguma forma, a realidade. Mas adoramo-nos, somos amigas desde os 9 anos, e estimulamo-nos uma à outra a ver o outro lado, entender formas diferentes de sentir as coisas e conceber a vida. E, claro está, convergimos no essencial.
Lembrei-me de escrever este artigo inspirada por este fim-de-semana. Porque as nossas conversas confirmam-me o porquê de eu gostar tanto de não cair na polarização, ao ter amigos de tantos diferentes tipos.
Por exemplo: sou uma fã incondicional da ciência. Como professora de Filosofia, abordo com entusiasmo o tema do conhecimento científico, da medicina baseada na evidência, dos métodos que evitam enviesamentos e a confusão entre o mero efeito placebo e resultados efetivos. Gozo com charlatanices “new age”, não acredito em cristais, homeopatia ou outras terapias alternativas, devido à sua falta de cientificidade, e transmito esta visão das coisas aos alunos.
Só que, ocasionalmente, falo-lhes também daqueles amigos que, como a M., são diferentes de mim, usam a palavra “energia” e “holístico” com frequência e recorrem a essas terapias todas, ou até praticam algumas delas. Uns são promotores de cursos e workshops a que eu nunca iria, outros cozinham coisas que, se não fossem eles, eu nunca comeria, outros preferem curar uma dor dentes com ervas e alho a tomar um antibiótico que seja.
Lembro-me da incredulidade de uma aluna minha que não estava à espera. “A STORA TEM AMIGOS QUE SÃO CONTRA AS VACINAS???”, perguntou ela, quando eu os citei. Respondi que sim. E que tenho vários até que acreditam e se envolvem em rituais xamânicos e têm histórias bem maradas para contar.
A verdade é que, por mais que eu não tenha dúvidas sobre o mérito da vacinação universal e me irrite que a imunidade de grupo fique diminuída por teorias pseudocientíficas, nenhuma destas coisas é tão essencial para mim que me impeça de ser amiga de alguém que pense de outra maneira. O que é fundamental é que não seja fascista. Que não despreze os direitos humanos. Que não tenha o dinheiro como prioridade na vida. Que não seja acrítico em relação ao sistema capitalista. Que não se esteja a borrifar para o planeta. Que não se esteja a borrifar para quem é de outro país. Ou de outra raça. Ou do prédio ao lado.
Tenho amigos que não acreditam em Deus – e eu sim. Tenho amigos que defendem o direito ao aborto com unhas e dentes – e eu não. Tenho amigos que são católicos conservadores e outros que são ferozmente anticlericais. Tenho amigos no CDS e outros no Bloco de Esquerda. Amigos que gostam de McDonald’s e amigos vegan. Tenho amigos professores universitários e outros que nunca acharam graça à escola. Uns são físicos de partículas e outros acham que a ciência é uma versão opinável das coisas. Uns são homossexuais super livres e soltos na sua conduta, outros defendem a virgindade até ao casamento – com múltiplas variações pelo meio (homossexuais castos, heterossexuais libertinos, etc; amigos homofóbicos é que não tenho).
Gosto que não frequentemos a mesma bolha. Que apreciemos o diálogo e tenhamos curiosidade recíproca. Gosto que digam coisas que me incomodam e espicaçam e que me deixem incomodá-los também.
Enfim, acho que dá para perceber a ideia. Gosto que não frequentemos a mesma bolha. Que apreciemos o diálogo e tenhamos curiosidade recíproca. Gosto que digam coisas que me incomodam e espicaçam e que me deixem incomodá-los também. Quando estamos juntos, as horas passam-se a conversar sobre o que nos une, os valores mais essenciais do amor, da partilha, da justiça e da compaixão, do ativismo por causas nobres, da valorização do estar e do ser, mais do que o fazer e o ter. E o que nos separa serve para dar mais graça às conversas, quebrar a monotonia, mas sem que nos detenhamos demasiado no bate-boca sobre minudências que não definem quem somos. Percebemos assim que os temas são complexos, que as coisas não são a preto e branco e que quem pensa de outra maneira não é parvo. E é bom que essa diversidade nos enriqueça a casa e a cabeça, para não nos fecharmos num universo próprio que deixa os outros de fora. Porque, numa época é que o mundo digital nos polariza, porque confirma as nossas convicções sem fomentar a escuta ativa, penso que é importante não fazermos o mesmo na vida.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.