“As migrações constituirão uma pedra angular do futuro do mundo.” (Fratelli Tutti, §40)
Se olharmos para as migrações – o tema que divide e polariza cada vez mais as nossas sociedades – como cristãos, não podemos ignorar o critério do destino universal dos bens.
Em cada terra, ao longo de séculos, milénios, desenvolvem-se regras, estruturas, uma cultura, através do trabalho de quem a habita, e que tem em vista (ou não) alcançar uma maior dignidade de vida para todos. Se acreditarmos que os lugares têm como destino estar ao serviço da dignidade dos Homens, não temos razão para considerar que uns têm mais direito a viver uma vida digna nessa terra do que outros, no entanto, a estrutura e a cultura que foi desenvolvida é o que permite que haja uma dignidade partilhada e uma verdadeira integração. Ela deve ser protegida mas não deve ser cristalizada: pode e deve mudar em vista da integração de novas pessoas e do seu desenvolvimento humano integral, o que implica que estas possam colaborar ativamente na construção da sociedade – com as suas culturas e talentos (nota1).
Podemos sentir medo do diálogo entre culturas tão diferentes, com referências que nos são em muito desconhecidas, podemos temer não encontrar pontos comuns em temas fundamentais. Mas a nível pessoal Deus nunca nos chamou a fecharmo-nos ao verdadeiro diálogo e encontro com o outro, apenas porque podemos ter de fazer cedências, ou mudar: pelo contrário, é aí que Ele nos encontra e nos molda. O que nos é pedido a nível pessoal é-nos pedido a nível societal.
Mas a nível pessoal Deus nunca nos chamou a fecharmo-nos ao verdadeiro diálogo e encontro com o outro, apenas porque podemos ter de fazer cedências, ou mudar: pelo contrário, é aí que Ele nos encontra e nos molda.
A cultura portuguesa não está ameaçada pela mudança. Ela própria é feita de mistura, de mudanças constante. A história de Portugal que hoje conhecemos é fruto de uma grande mistura de povos ao longo de séculos. Temos no nosso código genético “sermos migrantes”.
Mas encontrar o outro não significa esvaziar-me de mim, fazer todas as cedências. Como sabemos, no verdadeiro diálogo com outro, nenhuma das partes é anulada, mas precisamente ambas potenciadas no que são, e moldadas para melhor. Mais uma vez, dialogar não é fazer tábua rasa, a profundidade de uma história de séculos não é ameaçada por entrar em diálogo, por acolher e incluir migrantes.
No entanto, dialogar não é fácil. Não é fácil encontrar o justo equilíbrio, saber ceder, saber onde não ceder. O processo da inclusão concretiza-se em casos concretos, particulares, em detalhes, e exige de nós uma dedicação e ação constantes. Se as respostas nos parecem simples e gerais, estamos a simplificar e reduzir algo complexo.
O “amor civil e político” de que tanto nos fala o Papa Francisco não se deixa ficar nas resistências à dificuldade e à exigência, no medo à abertura, ou à mudança.
Para mim, membro da comunidade Rupert Mayer, passos importantes para entrar neste desafio foram:
Ouvir os nossos medos ou resistências:
Quando não temos intenção de corrigir logo os medos deste processo – medos nossos ou de outros – mas há pelo contrário um espaço seguro para expressar o medo, para lhe dar nome, ficamos também mais livres para escutar outras perspectivas, procurar informação, encontrar caminhos.
Devemos então começar por (re)conhecer os nossos medos, realidade que temos de atravessar e não ignorar. E perguntar “O que receio? A necessidade de abrir a minha cultura a outras? A de partilhar espaços e bens? A violência que se pode gerar?”
Ouvir o migrante:
Conhecer, estar, e sentir com, os migrantes, num ambiente de partilha e troca é raro. Não costumamos ter conversas sinceras e prolongadas, – como tivemos a sorte de ter com a Ghalia Taki, sobre o seu testemunho de vida enquanto refugiada síria e trabalhadora do JRS – Serviço Jesuíta aos Refugiados, e com a Maria Alba, sobre o trabalho da Associação Renovar a Mouraria.
Não é dada voz aos migrantes em espaço público. Mas não nos damos conta de que não temos acesso a estes testemunhos. Achamos que já conhecemos a realidade, porque somos bombardeados por notícias ou opiniões sobre este tema. Ouvir a experiência do migrante é humanizar uma realidade que costumamos abordar com uma distância fria e ascética. E isto – ouvir, estar, tocar, os que ainda são deixados nas margens – é o que o Papa Francisco tanto nos tem pedido. (nota 2)
Quando temos acesso a estes testemunhos, muitos dos nossos medos e preconceitos são desconstruídos, ou passam a ser temperados pelo desejo de respeitar a dignidade do outro e o incluir na construção da sociedade. Percebemos também muito da realidade de exclusão que o migrante vive na pele, e questionamo-la. Percebemos melhor o que move a deixar uma terra e como é a condição de ser desterrado, percebemos melhor em que é que as instituições do governo ou a sociedade civil estão a falhar na integração (as questões das equivalências profissionais, o acesso a informação, à língua), – “não é justo receber ou tratar o estrangeiro sem políticas que promovam e ajudem à sua integração” – percebemos como é ténue a diferença das histórias por trás do migrante legal ou ilegal, e como a etiqueta de criminalidade o desumaniza (aconselhamos a este propósito o filme l’Histoire de Souleymane), percebemos a cultura que o migrante traz, qual a sua esperança ao vir para um novo país e como quer contribuir, …
Foi também ao ouvir factos científicos, ler artigos informativos, que nos apercebemos de tantos mitos, medos, preconceitos, que já tínhamos assimilado e pelos quais somos bombardeados sem nos apercebermos.
Ouvir a ciência:
Foi também ao ouvir factos científicos, ler artigos informativos, que nos apercebemos de tantos mitos, medos, preconceitos, que já tínhamos assimilado e pelos quais somos bombardeados sem nos apercebermos. Hoje, tantas vezes, alguns media oferecem imagens e histórias, enviesadas, que espicaçam os nossos medos e os alimentam. A forma de contrariar este fenómeno é procurar informação honesta, cientificamente estudada. Com estes artigos, aprendemos tanto sobre os mitos da relação entre acolhimento de migrantes e declínio da economia ou da cultura, sobre a postura do migrante em aprender a língua, assimilar a cultura, etc.
Alimentar o sonho:
Neste jubileu da esperança, perguntamos:
Desejo que o processo de inclusão seja fortalecido e seja fecundo? Tenho esperança de que os migrantes contribuam com os seus dons, sejam co-envolvidos na construção da sociedade e a enriqueçam? Sonho com uma vida partilhada, e o cumprimento do destino universal dos bens?
Nota 1 – «Integrar» significa permitir que refugiados e migrantes participem plenamente na vida da sociedade que os acolhe, numa dinâmica de mútuo enriquecimento e fecunda colaboração na promoção do desenvolvimento humano integral das comunidades locais. «Portanto – Como escreve São Paulo – já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus».
Nota 2 – “Frequentemente, quando falamos de migrantes e deslocados, limitamo-nos à questão do seu número. Mas não se trata de números; trata-se de pessoas! Se as encontrarmos, chegaremos a conhecê-las. E conhecendo as suas histórias, conseguiremos compreender.” (Mensagem do Papa Francisco para o dia Mundial do Migrante e do Refugiado de 2020)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.