“Ninguém põe os seus filhos num barco se a água não for mais segura do que a terra”

A miséria e as condições de vida indignas representam uma das principais causas que obrigam as pessoas a migrar. O atual sistema económico mundial resulta numa crescente desigualdade na distribuição da riqueza.

A Semana Nacional das Migrações é celebrada em Portugal na segunda semana de agosto para coincidir com a peregrinação aniversária ao Santuário de Fátima desse mês maior de férias. É tradicionalmente a peregrinação das comunidades da diáspora portuguesa pelo mundo, mas cada vez mais também das comunidades imigrantes em território luso. A nível da Igreja universal, o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado é celebrado, porém, no último domingo de setembro, este ano no dia 24. Valerá a pena, por isso, dedicar alguma atenção à Mensagem do Papa Francisco para este ano, com o tema “Livres de escolher se migrar ou ficar”.

Francisco afirma que decidiu desta vez dedicar a sua Mensagem ao tema da liberdade “que sempre deveria animar a escolha de deixar a própria terra” e que constitui uma “preocupação pastoral difusa e partilhada” por parte das Igrejas locais. O Papa reconhece de imediato, no entanto, com muito realismo, que o ato de migrar não é hoje, em muitos casos, uma escolha livre: “conflitos, desastres naturais ou, simplesmente, a impossibilidade de levar uma vida digna e próspera na própria terra natal obrigam milhões de pessoas a partir”.

O Papa reconhece de imediato, no entanto, com muito realismo, que o ato de migrar não é hoje, em muitos casos, uma escolha livre: “conflitos, desastres naturais ou, simplesmente, a impossibilidade de levar uma vida digna e próspera na própria terra natal obrigam milhões de pessoas a partir”.

Em contraste com tantos nos países afluentes que questionam as reais intenções de quem se vê forçado a partir, o Papa declara com firmeza: “Os migrantes fogem por causa da pobreza, do medo, do desespero”. Custa muito, de facto, escutar e ler determinadas narrativas, até nalguns casos de quem se diz cristão, como as que sustentam que muitos daqueles que arriscam a vida para cruzar o Mediterrâneo são invasores, ilegais que devem ser devolvidos à procedência, ameaças ao modo de vida europeu, ou mesmo terroristas. Recordo o que disse a jornalista sul-africana Zukiswa Pikoli a propósito da imensa tragédia ocorrida a 14 de junho último nas águas da Grécia, em que mais de 600 refugiados perderam a vida: “Lembro-me das palavras da escritora e poeta Warsan Shire, que nasceu no Quénia, filha de pais somalis que mais tarde emigraram para o Reino Unido: «Ninguém põe os seus filhos num barco se a água não for mais segura do que a terra»”.

Em contraste com tantos nos países afluentes que questionam as reais intenções de quem se vê forçado a partir, o Papa declara com firmeza: “Os migrantes fogem por causa da pobreza, do medo, do desespero”.

A miséria e as condições de vida indignas representam uma das principais causas que obrigam as pessoas a migrar. O atual sistema económico mundial resulta numa crescente desigualdade na distribuição da riqueza. Nas palavras de Francisco, é “uma economia que mata”. Ou, como dizia um Bispo do continente africano numa recente consulta acerca dos movimentos migratórios na área do Mediterrâneo organizada pelo nosso Dicastério: “se a riqueza não chega onde estão os pobres, então os pobres vão até onde está a riqueza”. Inevitavelmente. Como sempre, aliás, aconteceu, e como disso dão prova os grandes movimentos migratórios dos séculos XIX e XX.

Se esta é a realidade, que sentido tem então falar de liberdade de escolher migrar ou ficar? A resposta do Papa é clara: “Para fazer da migração uma escolha verdadeiramente livre, é preciso esforçar-se por garantir a todos uma participação equitativa no bem comum, o respeito dos direitos fundamentais e o acesso ao desenvolvimento humano integral”. Estes são objetivos que derivam dos princípios basilares que a doutrina social da Igreja vem elaborando desde há décadas. A sua implementação é muito difícil, bem o sabemos, no âmbito do sistema económico que rege o mundo e tendo em conta a correlação de forças nas relações entre os Estados. Francisco pede esforços decisivos para “deter a corrida armamentista, o colonialismo económico, a pilhagem dos recursos alheios, a devastação da nossa casa comum”. O Papa não isenta de responsabilidades, é certo, os governos dos países de origem dos fluxos migratórios: “É claro que a responsabilidade principal cabe aos países de origem e seus governantes, chamados a exercer uma boa política, que seja transparente, honesta, clarividente e ao serviço de todos, especialmente dos mais vulneráveis”. De facto, a corrupção, a repressão violenta das liberdades fundamentais e a ausência de um espaço político e social verdadeiramente democrático são fatores que empurram muitos para a migração. O modo como os países do Ocidente e outras potências mundiais se relacionam com estes regimes não deixa muitas vezes, porém, de parecer hipócrita, ora apoiando ditadores e líderes corruptos ao sabor dos próprios interesses, ora fazendo-os cair e assim desestabilizando nações e inteiras regiões.

De facto, a corrupção, a repressão violenta das liberdades fundamentais e a ausência de um espaço político e social verdadeiramente democrático são fatores que empurram muitos para a migração.

Para terminar esta breve reflexão, sublinho como o Papa sustenta que mesmo quando as circunstâncias permitam exercer a liberdade de migrar ou ficar, é preciso “garantir que essa escolha seja esclarecida e ponderada, a fim de evitar que muitos homens, mulheres e crianças caiam vítimas de perigosas ilusões ou de traficantes sem escrúpulos”. A Europa ou a América do Norte continuam a ser um El Dorado de perigosas ilusões, para quem julga, e são muitos, que ali encontrará apenas facilidades. E as redes lançadas pelo florescente e extremamente lucrativo negócio do tráfico continuam a capturar seres humanos em cada vez maior número. “Por isso, enquanto trabalhamos para que toda a migração possa ser fruto duma escolha livre, somos chamados a ter o maior respeito pela dignidade de cada migrante; e isto significa acompanhar e gerir da melhor forma possível os seus fluxos, construindo pontes e não muros, alargando os canais para uma migração segura e regular”. Muito trabalho pela frente, enquanto indivíduos, comunidades, grupos, para a Igreja no seu todo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.