As instituições podem morrer – a escola num tempo de IA

E aí as máquinas não chegam. Mas tentam chegar. E se a escola não assume este seu papel fundamental, deixa o espaço livre para que as gerações futuras confundam amor com “like”, solidariedade com “share”, compaixão com “😥”.

Já temos carros sem condutores, notícias sem jornalista, análises de mercado sem analista. No início deste ano, uma startup israelita desenvolveu um algoritmo que venceu uma equipa de advogados na análise de contratos (LawGeex). Vale a pena ter em atenção as palavras de Demis Hassabis, fundador da DeepMind, a empresa que desenvolveu um programa de computador que joga Go: “The whole beauty of all these types of algorithms is that because they are learning for themselves, they can go beyond what we as the programmers know how to do. And that allows us to make new breakthroughs in areas as sciences and medicine”. Esta capacidade do programa “aprender” foi fundamental para poder jogar Go.

No xadrez há um número finito de jogadas possíveis. Por isso, apoiados em muito poder de computação, os programas de xadrez tradicionais simulam em cada jogada todas as jogadas possíveis e respetivas respostas, optando pela melhor. Já no Go esta técnica não funciona pois o número de jogadas possível é infinito. O que a DeepMind conseguiu fazer, foi criar um programa que “aprende” a jogar… jogando (aconselho a ver o documentário AlphaGo da Netflix). E jogando joga cada vez melhor. Até ao ponto em que venceu o campeão mundial de Go.

Exemplos muito recentes de que ao nível das instituições coisas que nunca imaginámos possível podem realmente acontecer. Esta introdução é para ilustrar que nunca nos passou pela cabeça que a escola pudesse morrer. Mas, se nada for feito, vai mesmo (se é que não está já a acontecer sem nos apercebermos).

Rodrigo Queiroz e Melo

Num registo completamente diferente, nunca nos passou pela cabeça que alguém como o atual Presidente dos EUA fosse eleito Presidente dos EUA. Mas a verdade é que foi. Nunca nos passou pela cabeça que um governo minoritário do PS fosse apoiado por 4 anos pelo PCP. Mas a verdade é que está a ser. Nunca nos passou pela cabeça que o Diário de Notícias deixasse de ser impresso, mas deixou. Exemplos muito recentes de que ao nível das instituições coisas que nunca imaginámos possível podem realmente acontecer. Esta introdução é para ilustrar que nunca nos passou pela cabeça que a escola pudesse morrer. Mas, se nada for feito, vai mesmo (se é que não está já a acontecer sem nos apercebermos).

Dar aulas – ensinar coisas – e receber aulas – aprender coisas – é aquilo a que professores e alunos dedicam mais tempo quando estão na escola. Mas será para isto que serve a escola? Dar aulas é algo que hoje já há máquinas a fazer razoavelmente bem. A Khan Academy ou a experiência de Sugata Mitra “a hole in the Wall” são apenas exemplos do quanto já se faz. Mas são irrelevantes quando comparados com o potencial da aplicação ao ensino da inteligência artificial. Pensem nisto: um programa que diagnostica as necessidades de aprendizagem do aluno, ensina-lhe a matéria, avalia o que o aluno aprendeu e não aprendeu, diagnostica porquê e ajuda-o a ultrapassar dificuldades ou a aprender coisas novas. Tratando cada aluno como se fosse o único e até colocando alunos com dificuldades semelhantes a trabalhar juntos ou colocando alunos a ensinar uns aos outros. É imparável. Na técnica de ensinar, a tecnologia baterá os humanos sem apelo nem agravo.

Se o objetivo da escola é os alunos aprenderem, ficar no topo do ranking, então a escola morreu. Pode demorar mais uma década (o facto de ainda não haver inteligência artificial aplicada ao ensino é a melhor prova de que a educação não é um negócio!) mas vamos lá chegar.

Rodrigo Queiroz e Melo

Se o objetivo da escola é os alunos aprenderem, ficar no topo do ranking, então a escola morreu. Pode demorar mais uma década (o facto de ainda não haver inteligência artificial aplicada ao ensino é a melhor prova de que a educação não é um negócio!) mas vamos lá chegar. O impacto das novas tecnologias na educação pode levar à morte da instituição escolar se esta não (re)encontrar a sua missão. Desenvolver a literacia e a numeracia, preparar para o trabalho, criar uma identidade cultural partilhada a uma população, tudo isto são tarefas que as máquinas poderão fazer e até de modo mais eficiente que os humanos. Mas dar sentido e pertença; desenvolver competências emocionais e sociais; propor um projeto de vida, isso são tarefas que radicam no que há de mais humano. E aí as máquinas não chegam. Mas tentam chegar. E se a escola não assume este seu papel fundamental, deixa o espaço livre para que as gerações futuras confundam amor com “like”, solidariedade com “share”, compaixão com “😥”. Dar sentido e pertença, desenvolver competências emocionais e sociais, propor um projeto de vida não se faz com voluntarismo.

Não basta ter boa vontade. É intelectualmente exigente, é pessoalmente exigente, é emocionalmente exigente. Dar sentido e pertença só é possível com um projeto educativo claro, partilhado por uma equipa sólida e vivido por todos. O Papa Francisco disse que a missão da escola católica é trabalhar na periferia. Penso que a periferia não é só uma periferia social. É, também, procurar dar resposta a este desafio de (re)encontrar o essencial da escola. Não só para a manter viva, mas especialmente para que as próximas gerações construam um mundo em que os androritmos se impõem aos algoritmos (tema para o próximo artigo).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.