As fronteiras da dignidade humana

A sacralidade da vida humana (a sua dignidade) não depende de absolutamente mais nada para além dela mesma, querida e amada por Deus tal como é.

Temos sido tomados por um terrível equívoco em relação à questão primordial do que torna uma vida digna, e por isso defensável a qualquer custo. Os argumentos racionalistas e voluntaristas da Idade das Luzes tinham sido precedidos pelo próprio entendimento escolástico de que ser-se criado à imagem e semelhança de Deus significa a capacidade de O conhecer e amar, de procurar a verdade e aderir livremente a ela. Mas este entendimento é curto e perigoso, deixando de fora quem, por limitações de qualquer tipo, não consegue conhecer e amar Deus, nem aderir livremente a Ele, como se fossem excrementos humanos, uma humanidade de segunda categoria, e, por isso mesmo, descartável.

Não, a dignidade da pessoa humana não se baseia prioritariamente na capacidade de conhecer e amar a Deus e de aderir livremente a Ele, deriva antes de ser criatura do Incriado, pessoa humana subsistente para além do tempo e da história, independentemente das circunstâncias de lugar, das capacidades, das oportunidades e das próprias possibilidades. A sacralidade da vida humana (a sua dignidade) não depende de absolutamente mais nada para além dela mesma, querida e amada por Deus tal como é.

Não, a dignidade da pessoa humana não se baseia prioritariamente na capacidade de conhecer e amar a Deus e de aderir livremente a Ele, deriva antes de ser criatura do Incriado, pessoa humana subsistente para além do tempo e da história, independentemente das circunstâncias de lugar, das capacidades, das oportunidades e das próprias possibilidades.

Qualquer equívoco a este respeito, que aliás existe desde que há humanidade, é desfeito pelo próprio Cristo, que vem prioritariamente abraçar a fragilidade, os últimos, os sofredores, os leprosos, os cegos, os homens e as mulheres pecadoras, todas as franjas da existência humana. Também a religião do Seu tempo os separava, ostracizava, matava, em nome de uma pureza qualquer, cujo poder (numa autoproclamada lei dos “melhores”), ao invés de servir, esconde, separa e mata. E hoje, do mesmo modo.

Não tem sido fácil à cristandade, como não foi na altura, dialogar num tempo cheio das durezas dos mais fortes, dos mais puros, dos mais capazes, dos “iluminados”. E tentamos argumentar, quando na verdade o único argumento possível é sermos Cristo. O único argumento possível é ajoelharmos maravilhados perante a vida frágil, toda ela, aquela que Deus habita, mas não parece, pois não tem “qualquer beleza ou majestade que nos atraia”, nem há “nada na sua aparência para que o desejemos” (Isaías, 53, 2).

O único argumento possível é ajoelharmos maravilhados perante a vida frágil, toda ela, aquela que Deus habita, mas não parece, pois não tem “qualquer beleza ou majestade que nos atraia”, nem há “nada na sua aparência para que o desejemos” (Isaías, 53, 2).

Também nós, os cristãos, cedemos facilmente aos argumentos utilitários do mundo para fugir ao cuidado dos frágeis, porque “temos de trabalhar”, porque “estamos muito ocupados”, “a nossa vida familiar não nos permite”, o que resumido, significa “porque não amamos”, porque não queremos ser Cristo, porque a nossa autodeterminação consciente (no racionalismo dos iluminados) nos catapulta para o mundo das justificações pagãs.

O cuidado – sossegado, contemplativo, amoroso, é o maior testemunho de Deus em nós, que empresta os Seus olhos, as Suas mãos e o Seu coração, para que amemos ao Seu modo, hoje e agora. Sem as pressas e as angústias do tempo, sem as distrações fáceis e cobardes que nos cercam, sem a trepidação que rouba de nós a paz.

O cuidado – sossegado, contemplativo, amoroso, é o maior testemunho de Deus em nós, que empresta os Seus olhos, as Suas mãos e o Seu coração, para que amemos ao Seu modo, hoje e agora. Sem as pressas e as angústias do tempo, sem as distrações fáceis e cobardes que nos cercam, sem a trepidação que rouba de nós a paz.

Só quando descermos ao Deus que habita os últimos para os servirmos reverentemente (a única forma justa de serviço), saberemos dar ao mundo as razões da nossa esperança. Não por nós mesmos, mas porque cedemos lugar a esse Deus Criador que ama cada uma das Suas criaturas até dar a vida por elas, sobretudo exatamente aquelas que nada podem e nada são.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.