As escadas para o céu…

Na sociedade pós-moderna, urge mais do que pensar o outro, senti-lo, ser Irena Sendler e mais facilmente subir as escadas que levam ao céu...

O Homem guarda na sua memória muitos enigmas por resolver…

Sendo eu ainda criança, em idade pré-escolar, a viver aquela fase em que abundam as interrogações e as dúvidas próprias da chamada idade dos porquês, era ao meu avô que, muitas vezes, recorria para satisfazer a minha curiosidade e alimentar a imaginação. Numa das numerosas conversas existenciais que tive com ele durante um dos muitos passeios que fizemos juntos, dei por mim a olhar para o céu e a perguntar-lhe como poderia lá chegar. Como habitualmente, e para meu contentamento, o meu querido e saudoso avô, após breve hesitação e sem cuidar da forma do discurso, deu-me a resposta que, até hoje, ficou na minha memória e que, de vez em quando, dou por mim a recordar: «Até lá chegarmos, temos muitas escadas, que demoram muito a subir. Só podemos ir subindo uma a uma, quando fizermos boas ações».

Este episódio foi reavivado quando, por motivos de trabalho, me deparei com uma figura heróica que, durante largos anos, permaneceu injustamente esquecida: Irena Sendler, cidadã polaca, também conhecida como “O Anjo do Gueto de Varsóvia”.

Ensina a História que, na sequência da invasão e da ocupação pelas tropas hitlerianas, a Polónia foi palco das maiores atrocidades, que se repetiram noutros países durante a Segunda Guerra Mundial. Entre as vítimas do horror nazi, além de diversas minorias, contam-se os judeus que, no caso da Polónia, foram emparedados em guetos, sendo o mais conhecido o gueto de Varsóvia, que funcionavam como antecâmaras da deportação para os campos de concentração e, quase sempre, da morte.

Foi neste contexto que se evidenciaram o espírito de solidariedade e o sentimento de compaixão de Irena Sendler. Arriscando a própria vida, sem nada pedir ou esperar em troca, conseguiu retirar mais de 2500 crianças judias do gueto de Varsóvia, escondendo-as em sacos de lixo, caixões, ambulâncias, ou fazendo-as passar por pacientes com tifo. Convencia os pais a entregarem-lhe os filhos, com a promessa de tudo fazer para que lhes fossem devolvidos quando a guerra terminasse. Irena fazia o registo do nome original das crianças e do novo nome que passavam a ter já na condição de crianças polacas e católicas, na esperança de que algum dia reencontrassem as suas famílias. Para levar a cabo os seus propósitos, contou com a colaboração de famílias polacas e da Igreja, que se dispuseram a acolher essas crianças, salvando-lhes a vida. Descoberta pelos nazis, foi presa e brutalmente torturada, quebraram-lhe os ossos dos pés e das pernas, e foi condenada à morte. No entanto, conseguiu escapar à execução e passou a viver sob identidade falsa.

Só mais tarde, já na adolescência, consegui entender a resposta, aparentemente trivial do meu avô. A sua educação cristã levou-o a entender o bem como algo que se deveria praticar com e para os outros e não para nós mesmos. A sua ideia de bem implicava a relação com o outro, com o próximo. Impõe-se, então, a questão: Será que Irena Sendler subiu, de uma só vez, todas as escadas que levam ao céu?

Após 1945, o mundo mudou. As metanarrativas acabaram, instalou-se uma certa desordem e as mudanças sucederam-se a um ritmo vertiginoso: o movimento de descolonização, que, em menos de duas décadas, fez ruir impérios de quinhentos anos e fez emergir o “terceiro mundo”; revoluções em vários países; aparecimento de novos movimentos sociais e de novas formas de contestação; a juventude ganhou um novo estatuto na sociedade; crescimento do consumo; democratização do acesso aos meios de comunicação e consequente surgimento da comunicação de massas; revolução da informação e pluralização da sociedade…

Afinal, onde está o outro? Do outro lado do ecrã do computador, do telemóvel ou de um tablete? Quem é o outro? Aquele que conhecemos virtualmente ou no qual projetamos idealizações?

Trata-se, afinal, de uma nova fase, que se segue à falência do projeto iluminista da modernidade. Os valores iluministas do progresso são colocados em causa no pós-guerra. O progresso não proporciona apenas felicidade, também causa destruição. A ciência mostra a sua incapacidade para promover a paz e o diálogo na Humanidade e deixa de significar verdade incontestável. É o fim de um ideal racionalista, da razão como guia, o que ditará o fim das visões consensuais e legitimadoras. Perante isto, a sociedade reorganizou-se a partir dos estilhaços das verdades destruídas e das narrativas legitimadas, a realidade líquida de Bauman…

Tal como acontece com um quadro cubista, importa encarar a realidade sob diferentes prismas, leituras e interpretações, onde tudo é aceite, tudo é verdade, gerando uma certa esquizofrenia mental. Tudo isto conduzirá ao que Gilles Lipovetsky considera ser expressão de individualismo contemporâneo, satisfeito pelo consumo, que conduz ao vazio, à opacidade e à estupidificação, numa realidade frenética, carregada de distopias.

Afinal, onde está o outro? Do outro lado do ecrã do computador, do telemóvel ou de um tablete? Quem é o outro? Aquele que conhecemos virtualmente ou no qual projetamos idealizações? Não queremos novos palcos de guerra, manifestações virtuais ou físicas, levantamentos ou sedições para sentirmos o outro, abraçar causas e lutar por direitos, mas, na sociedade pós-moderna, urge mais do que pensar o outro, senti-lo, ser Irena Sendler e mais facilmente subir as escadas que levam ao céu…

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.