No passado dia 29 de setembro, celebrou-se na Praça de S. Pedro a Santa Missa para o 105.º dia Mundial do Migrante e do Refugiado. Esta celebração foi realizada em união com os fiéis de todas as dioceses do mundo, para reafirmar a necessidade de que ninguém seja excluído da sociedade, seja um cidadão residente de longa duração ou alguém recém-chegado.
Tive a alegria de estar presente, com a minha família, junto de milhares de peregrinos de diferentes nacionalidades, que coloriram a Praça com a riqueza e o entusiasmo contagiante da diversidade. Senti-me também muito grata por esta oportunidade. Pois, sendo católica e tendo o privilégio de servir desde há vários anos migrantes e refugiados em Portugal, a participação nesta celebração teve ainda um significado mais profundo.
Estava uma manhã quente e clara, aguardámos sob um sol intenso, num clima de festa e recolhimento, próprios das grandes celebrações presididas pelo Papa Francisco. Em redor, logo escutámos o nosso idioma, peregrinos de Portugal e de países lusófonos, junto de peregrinos que viajaram de muitos outros países para participar nesta celebração e muitos imigrantes e refugiados residentes em Itália. Aguardávamos todos com grande expectativa, a homilia e a mensagem do Papa para este dia especial, que neste ano teve como tema: “Não se trata apenas de migrantes”. Sabíamos que iríamos, uma vez mais, ser interpelados pelas suas palavras e ações. Mas fomos surpreendidos também.
O Evangelho lido nesse dia foi a parábola do rico e de Lázaro (Lc 16, 19-31): Um homem rico, muito ocupado em comprar roupas elegantes e em organizar esplêndidos banquetes, não vê o pobre Lázaro coberto de chagas à sua porta, que bem desejava saciar-se com o que caía da sua mesa. Quando ambos faleceram, Lázaro foi consolado e o rico ficou em tormentos.
Esta parábola pode ser vista como uma metáfora do nosso tempo, que nos deveria convidar à conversão. O Papa referiu, com tristeza, que o mundo atual vai-se tornando, dia após dia, mais elitista e cruel para com os excluídos. Enquanto em alguns países se vive como o homem rico, numa cultura de descarte, com todas as comodidades e abundância de bens e de alimentos, que se desperdiçam e acabam, não raras vezes, no lixo, noutros países de baixo rendimento, continuam milhares a viver na miséria e a morrer à fome, como o pobre Lázaro da parábola. Neste mês de Outubro, em que se assinala no dia 17 o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza, dá que pensar que desde há muito conhecemos esta situação de injustiça e sabemos que é possível erradicar a fome no mundo. Aliás, “Erradicar a pobreza” é o objetivo número um da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável (Agenda 2030) e “Erradicar a fome” é o segundo objetivo.
Enquanto isso, continuam a perecer milhares de homens, mulheres e crianças por falta de alimento e de subnutrição, em países mais pobres. Continuam ainda a abater-se guerras apenas sobre algumas regiões do mundo, enquanto as armas para as fazer são produzidas e vendidas noutras regiões, que depois erguem muros e pagam se preciso for para manter os refugiados bem longe da porta. Descartar ilustra ainda a ideia de exploração até ao limite de pessoas e de recursos naturais, para os colocar ao serviço de uns poucos mercados, somando a emergência climática à emergência humanitária. Não apenas o planeta está poluído pelos excessos e despojos do descarte, mas o próprio coração. E «quem sofre as consequências são sempre os pequenos, os pobres, os mais vulneráveis, a quem se impede de sentar-se à mesa deixando-lhe as “migalhas” do banquete» (homilia do Papa Francisco, 29 de setembro).
O Papa Francisco alertou uma vez mais para a “globalização da indiferença” e incapacidade de empatia, de compaixão, de verter lágrimas e chorar perante o sofrimento dos nossos irmãos mais pobres e excluídos. Os migrantes são uma oportunidade de conversão, ajudam-nos a ler os “sinais dos tempos” e estar atentos aos dramas de velhas e novas pobrezas. Ajudam-nos a libertar-nos do elitismo e da discriminação de quem não pertence ao “nosso grupo”, da indiferença e da cultura do descarte.
Esta parábola pode ser vista como uma metáfora do nosso tempo, que nos deveria convidar à conversão. O Papa referiu, com tristeza, que o mundo atual vai-se tornando, dia após dia, mais elitista e cruel para com os excluídos.
Assim, não se trata apenas de migrantes e refugiados, mas também de pessoas vulneráveis em geral. Trata-se de vencer os nossos medos, trata-se de caridade, trata-se da nossa humanidade, trata-se de não excluir ninguém, trata-se de colocar os últimos em primeiro lugar, trata-se da pessoa toda e de todas as pessoas, trata-se de arregaçar as mangas e empenhar-se seriamente na construção de um mundo mais justo, onde todos possam ter acesso aos bens da terra, todos possam realizar-se como pessoas e como famílias e onde a todos seja garantida a dignidade e os direitos fundamentais da pessoa humana.
Após a oração do Ângelus, o Papa Francisco confiou ao amor materno de Maria, Nossa Senhora da Estrada – Nossa Senhora das inúmeras estradas dolorosas –, os migrantes e os refugiados, juntamente com os habitantes das periferias do mundo e quantos se fazem seus companheiros de viagem. Depois, quis saudar a multidão reunida para esta celebração e percorreu no papamóvel a Praça de São Pedro. Era um momento muito aguardado por todos e sempre emocionante, ver o Papa de perto, saudar e ser abençoado/a por ele. Passou muito próximo de nós, com um sorriso no rosto. Seguidamente, desceu do papamóvel e avançou para um grande volume, coberto por um pano. Quando este foi retirado, revelou a escultura de uma barca, sobrelotada de pessoas migrantes e refugiadas em tamanho real, de diversas idades, contextos étnicos e culturais e diferentes tempos históricos. Nesta barca parece viajar a própria humanidade. Não há leme, mas existe esperança. De entre os migrantes, erguem-se duas asas – uma referência à Carta aos Hebreus: «Não vos esqueçais da hospitalidade, pela qual alguns, sem o saberem, hospedaram anjos» (Heb 13,2).
Confesso que fiquei maravilhada desde o primeiro momento em que vi a obra “Angels Unawares” surgir à luz do dia. Soube depois que a escultura de bronze e argila, da autoria do escultor canadiano Timothy Schmalz, foi uma sugestão do recém Cardeal Michael Czerny – cujo brasão tem também o símbolo de uma barca com migrantes e refugiados. Este forte simbolismo faz todo o sentido, pois o Mar Mediterrâneo é atualmente a fronteira mais mortífera e perigosa do mundo. Nos últimos seis anos, mais de 14 mil pessoas, homens, mulheres e crianças (catorze mil!) perderam a vida no Mediterrâneo. Neste ano, entre janeiro e outubro, mais de mil pessoas já perderam a vida a tentar chegar à Europa, sendo que uma em cada 28 pessoas que tentou esta travessia morreu (dados da Organização Internacional das Migrações). As condições em que as travessias ocorrem estão a piorar aumentando o risco. De acordo com o porta-voz da OIM, Leonard Doyle, que classificou esta situação com “carnificina no mar”, as mortes «devem-se, em certa medida, ao endurecimento das atitudes, o aumento das hostilidades com os migrantes, que fogem da violência e da pobreza». O Papa explicou que foi seu desejo que a obra ficasse na Praça de São Pedro, para que recorde a todos o desafio evangélico da hospitalidade.
Desde o início do seu pontificado (2013), com a viagem a Lampedusa, passando pelo desafio lançado ao acolhimento de uma família de refugiados em cada comunidade cristã (2015), até ao presente, o Papa Francisco tem sido consistente e até mesmo insistente na necessidade de acolhimento de migrantes e refugiados. Não o faz decerto por teimosia, mas movido pela fé e compaixão de quem continua a ver o pobre Lázaro às portas da Europa. Se quisermos salvar-nos, não podemos esquecer a nossa humanidade e quem somos, não podemos não chorar perante a dor e a injustiça, não acolher e não amar os Lázaros deste mundo, tocando as suas feridas e saciando a sua fome. Somos chamados a restaurar a sua humanidade, junto com a nossa, sem excluir ninguém, sem deixar ninguém de fora.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.