“Um caso desesperadamente triste” – assim descreveram o caso de Alfie Evans, de 23 meses de idade, os magistrados britânicos que decidiram autorizar o Hospital Alder Hey, de Liverpool, a desligar o seu suporte de vida, contra a vontade dos seus pais, Tom e Kate, por considerarem que não existia esperança de melhoria do seu estado de saúde. Na verdade, não se tratou apenas de um caso. No ano passado, a história de Charlie Gard, de apenas onze meses de idade, assumiu características semelhantes.
Charlie e Alfie tinham doenças raras e estavam ligados a um suporte de vida; em ambos os casos, os pais tinham a possibilidade de assegurar os seus cuidados noutros hospitais fora do Reino Unido (Charlie nos Estados Unidos da América e Alfie, em Itália); em ambos os casos tal possibilidade foi-lhes sistematicamente negada e determinado que o suporte de vida fosse desligado contra a vontade parental. O argumento invocado foi o facto de os hospitais ingleses considerarem ser este o superior interesse das crianças, uma vez que não existia esperança de cura, pelo que os tratamentos eram fúteis e apenas prolongavam o sofrimento dos bebés.
O diferendo entre os hospitais e as famílias acabou por ser julgado nos tribunais ingleses, tendo estes confirmado a posição do hospital, em todas as instâncias de recurso. Os magistrados britânicos ordenaram assim que o respirador artificial fosse desligado, o que acabou por resultar nas mortes de Charlie em 28 julho de 2017 e de Alfie no passado dia 28 de abril.
Este texto centra-se no caso de Alfie, que após lhe ter sido desligado o suporte de vida, no dia 23 de abril, sobreviveu cinco dias (de forma improvável, na opinião dos médicos, que previam apenas poucas horas de vida) respirando, por si próprio, durante esse período, situação que fez acender ainda mais a polémica.
O Papa Francisco apelou para que fossem respeitados os desejos da família. O hospital pediátrico do Vaticano, Bambino Gesù, declarou que estava disposto a receber o menino e o governo italiano concedeu a nacionalidade a Alfie e manteve um avião em estado de prontidão, caso as autoridades britânicas autorizassem o transporte do bebé para Roma. Tal nunca veio a acontecer. O último recurso judicial foi negado.
De acordo com o Artigo 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989: “Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas, ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.”
O conceito de “superior interesse da criança”, nalgumas situações de divergência entre os médicos e os familiares, permite realizar tratamentos não autorizados por estes, com vista à preservação da vida do paciente. São disso exemplo, os casos de transfusões de sangue proibidas por alguns grupos religiosos.
No entanto, no caso de Alfie, não se encontra em causa a preservação da vida. Antes pelo contrário, através da justiça, impõe-se a interrupção de cuidados que garantem a preservação da vida, apesar da veemente discordância dos progenitores. A este respeito, Ed Condon, um conhecido especialista em direito canónico e comentador, fez uma observação cheia de ironia e sintomática do mundo em que vivemos: «no Reino Unido pode levar-se um familiar para a Suíça para pôr fim à sua vida. Mas se tentar levar o seu filho para Itália para salvar a sua vida, a polícia mantê-lo-á como refém até morrer».
Os tribunais ingleses consideraram que os pais não estavam aptos a tomar a decisão correta pelo menor, decidindo de forma imparcial e neutra e analisando friamente qual o “superior interesse” da criança perante a extrema gravidade da sua doença neurológica degenerativa. Neste sentido, consideraram que prolongar a vida através de cuidados fúteis, mais do que um ato médico e um ato de amor dos pais, consistiria numa espécie de egoísmo mórbido e sofrimento inútil para o bebé. O argumento é razoável e até a moral (cristã e laica) reconhece a possibilidade de cuidados fúteis, cuja omissão é digna.
Não obstante, no caso individual de Alfie, subsistem dúvidas sobre se a decisão adotada é aquela que melhor defende o superior interesse da criança. Será tão óbvia e tão segura a avaliação sobre a irreversibilidade da condição de saúde do bebé, a ponto de justificar que seja imposta aos pais uma via na qual a morte é a única saída possível, impedindo-os de esgotar todas as alternativas que lhes são oferecidas? “Enquanto há vida, há esperança” – costumamos dizer. Os pais de Alfie defenderam, contra ventos e marés, a vida do seu filho, alegando que a mesma tem uma dignidade intrínseca que merece ser protegida e cuidada até ao esgotar de todas as vias. Não assumiram essa posição por capricho. O Hospital Bambino Gesù e outros profissionais de saúde estavam dispostos a ajudar Alfie e os seus pais (até porque a relação de confiança com os médicos do hospital de Liverpool já se encontrava gravemente comprometida). Não será razoável esta busca de alternativas, de uma “segunda opinião médica”, tão usual em casos de vida e de morte, abrindo o leque de opções de tratamentos e cuidados paliativos? Os pais não pretendem causar sofrimento inútil ao bebé e todos estão conscientes da gravidade do estado de saúde da criança (uma doença misteriosa, sem diagnóstico exato). Apenas desejam protegê-lo, cuidá-lo e amá-lo, pretendendo proporcionar-lhe todas as oportunidades viáveis de tratamento ao seu alcance, ainda que conscientes que a possibilidade de cura é remota.
Considerar, em casos desta complexidade, que o amor incondicional dos pais por um filho lhes turva a razão e os torna incapazes de decidir o que é melhor para ele, é no mínimo questionável. Precisamente porque são os pais da criança e porque a amam incondicionalmente. Existe aqui um laço afetivo que os habilita a procurar defender e preservar a vida e o bem-estar do seu filho.
Assim, a intervenção de entidades estranhas à família apenas deveria justificar-se quando estritamente necessário, com vista a suprir carências ou deficiências, nomeadamente no caso de ações ou omissões dos pais que se revelem prejudiciais, colocando em risco os filhos.
Independentemente da reflexão de cada um de nós sobre este tema, em que se levantam tantas questões do ponto de vista médico, jurídico e ético (que este texto não tem a pretensão de abarcar), a impressionante determinação, fé e coragem dos pais de Alfie não nos podem deixar indiferentes.
O seu testemunho de amor ajuda a iluminar os espaços cinzentos da vida.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.