O Vaticano e o sistema económico-financeiro: um puzzle incompleto

O sistema económico e financeiro em que vivemos levanta inúmeros desafios e questões. Ao entrar neste debate, o Vaticano aponta problemas e sugere caminhos, mas a sua reflexão não é isenta de dificuldades e convida a uma leitura crítica.

Em 2018 o Vaticano publicou o importante e impressionante “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones – Considerações para um discernimento ético  sobre alguns aspectos do atual sistema económico-financeiro” – ao qual o Ponto SJ reagiu oportunamente com opiniões de Inês Domingos e de Rui Cerdeira Branco. Apesar da sua enorme relevância e extrema atualidade, o documento continua pouco conhecido. Porque nele deteto alguns elementos que podem levar a interpretações e corolários menos justos, arrisco uma leitura crítica de alguns desses aspetos.

Antes de mais, aconselho a leitura do documento; não será fácil, para os leitores não economistas, mas vale a pena o esforço! Nele são abordados assuntos de grande complexidade, com uma sólida fundamentação factual e forte sustentação técnica, mas de forma intuitiva e com um texto de leitura muito fluida.

Gostaria de destacar que é impressionante a vastidão dos problemas das economias contemporâneas tratada no documento.

Ao nível das considerações gerais de fundo, realço as seguintes:

  • questões como a necessidade de colocar a economia ao serviço da formação integral da pessoa humana, e a exigência de discernimento ético;
  • a necessidade de avaliar o bem-estar material por medidas mais abrangentes do que a mera produção (produto interno bruto);
  • a necessidade de travar as crescentes desigualdades e exclusões sócio-económicas, humanizando a ‘economia que mata’;
  • a premência de limitar os ganhos daqueles que especulam aproveitando-se de vantagens próprias assentes em assimetrias de informação.

Ao nível do sistema económico atual, realço a forma como se descreve o contexto de globalização e as suas ameaças à distribuição justa de rendimentos. Mais especificamente quanto ao sistema financeiro, destaco:

  • a descrição dos problemas de assimetria de informação e incentivos preversos na venda de produtos financeiros;
  • a explicação do surgimento de produtos financeiros de exagerada complexidade e risco difícil de aferir, num contexto de bancos ‘sombra’ não regulados;
  • a descrição de fenómenos de manipulação de alguns segmentos dos mercados financeiros;
  • fenómenos de fuga fraudulenta ou imoral aos impostos aproveitando as zonas ‘off-shore’;
  • má gestão de contas públicas e sobre-endividamento quer público quer privado.

Existem, contudo, alguns aspetos do “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones” que na minha opinião podem levar a interpretações e corolários menos justos.

Concordo que é premente: i) melhorar a regulação dos mercados financeiros, para supervisionar todas as instituições financeiras e minimizar as assimetrias de informação que fragilizam o público; ii) alterar estruturalmente o funcionamento das zonas ‘off-shore’ e melhorar a justiça na tributação; iii) promover o discernimento ético, nomeadamente ao nível das instituições com a criação de comissões de ética nas instituições financeiras; iv) promover um exercício crítico do consumo e da poupança.

Existem, contudo, alguns aspetos do “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones” que na minha opinião podem levar a interpretações e corolários menos justos.

Primeiro, parece-me que se incide demasiado na proposta de mecanismos de intervenção estatal. Por um lado, parece esquecer-se que muito foi já feito – pelo menos no mundo desenvolvido – na melhoria da supervisão das instituições e produtos, e na monitorização sistemática dos riscos, quer ao nível de instituições individuais quer ao nível do sistema financeiro como um todo. Por outro lado, parece-me que se sobrevaloriza o poder da regulamentação, criada e imposta a partir de cima, faltando talvez realçar melhor que a  regulação tem de ser sustentada numa alteração da educação moral e profissional. Ora, essa educação só pode ser inculcada em grupos intermédios como a família, comunidades religiosas, associações, as próprias empresas; parece-me que só aí se promove um adequado ‘discernimento ético’.

Segundo, parece-me que o documento critica demasiado a criação de novos instrumentos financeiros, e adota um tom geral que sugere que cada recurso gasto em atividades financeiras é menos um recurso que pode ser gasto em atividades reais – associadas aos bens não financeiros, apresentados como os que verdadeiramente interessam. Concordo que a complexidade excessiva induz falta de transparência e assimetrias de informação, e que essas devem ser combatidas. Discordo que se menospreze o papel das atividades financeiras. Os serviços prestados pela moeda e pelo financiamento proporcionam uma utilidade enorme, e regrediríamos imenso civilizacionalmente se quiséssemos voltar atrás com a história financeira. “De nós não depende se o mundo avança, depende se avançamos com o mundo”. A sofisticação dos instrumentos financeiros cumpre um papel nas sociedades contemporâneas, fazendo fluir muito melhor as poupanças das regiões onde são geradas para as regiões que delas carecem em cada momento. Já vimos que há que evitar progressos desordenados e injustos, mas não me parece que se possa travar o progresso financeiro, como não se pode travar o progresso técnico. O caminho é resolver os desequilíbrios que alguns progressos vão gerando espontaneamente, com mais e melhores progressos, não com regressos, porque isso seria negar a realidade em que estamos ‘encarnados’.

Sobrevaloriza-se o poder da regulamentação, criada e imposta a partir de cima, faltando talvez realçar melhor que a  regulação tem de ser sustentada numa alteração da educação moral e profissional.

Terceiro, e em alguma medida como corolário dos dois comentários anteriores, julgo que o documento é enviesado e injusto para com as pessoas que trabalham no sector financeiro e para com os aforradores cujos recursos estão aplicados em ativos financeiros. Não vejo abordados os dilemas morais e profissionais que muitos gestores financeiros sentiram nos anos anteriores à crise, quando sabiam (ou imaginavam) que estavam a vender produtos de qualidade duvidosa, mas a alternativa seria o colega do lado fazer todos os negócios, manter o emprego, ganhar prémios, e ele próprio perder o sustento da família. Ao apontar que quando os fundos de investimento deixaram de comprar títulos de dívida soberana (e depois privada) dos países sobre-envidados causaram sofrimento às populações desses países, não pondera o sofrimento das pessoas cujas poupanças seriam delapidadas se os fundos não procedessem a uma gestão financeira racional.

Finalmente, parece-me que o documento identifica a combinação do progresso financeiro com a globalização como as grandes causas do aumento das desigualdades na distribuição do rendimento. Isto permite uma narrativa segundo a qual os salários dos trabalhadores (do mundo desenvolvido, entenda-se) estão a ser esmagados e a sua segurança de emprego ameaçada pela concorrência global, enquanto os capitalistas conseguem manter taxas de remuneração sistematicamente elevadas e acumulam cada vez mais riqueza; e o corolário de que seria preciso travar a globalização e o desenvolvimento financeiro. Ora, na minha opinião estas crescentes desigualdades têm a ver com a globalização, sim, mas pouco ou nada com o desenvolvimento financeiro; e essa narrativa parece-me incompleta e anacrónica. Por um lado, convém ter presente que os capitalistas são pessoas – e cada vez mais pessoas – que buscam recompensa pelo ‘sacrifício’ de terem adiado consumo. Por outro lado, convém não esquecer que à escala mundial nunca o nível de vida material foi tão elevado para tantos – o que se nota na redução das desigualdades entre países do primeiro e do terceiro mundo. Sim, dentro dos países desenvolvidos as desigualdades têm aumentado; e neles assistimos ao crescimento da precariedade de muitos empregos, aumento do desemprego ou sub-emprego, aumento do fosso entre as aspirações de vida material e os salários de largas franjas da população. Mas a verdadeira assimetria hoje não é entre trabalhadores e capitalistas mas entre trabalhadores qualificados e trabalhadores não qualificados; nesta fase de transição em que os custos unitários de produção dos bens transaccionáveis internacionalmente são muito mais baixos nos países que acabam de integrar o mundo global – China, Índia, etc… – os trabalhadores não qualificados do mundo desenvolvido sofrem um impacto desfavorável (frequentemente dramático, sim!). Pode decidir-se politicamente voltar atrás com a globalização, mas não se pode voltar atrás com a tecnologia; e quanto à globalização, a Economia mostrou há muito que o comércio internacional aumenta, no equilíbrio, o nível de vida de todos os que nele intervêm.

A verdadeira assimetria hoje não é entre trabalhadores e capitalistas mas entre trabalhadores qualificados e trabalhadores não qualificados

O que verdadeiramente importa é criar um ambiente que promova a qualificação das pessoas, permitindo à população do mundo desenvolvido explorar melhor e mais alargadamente as possibilidades do progresso tecnológico para encontrar novos produtos, novos empregos, e reaproximar o seu nível de vida das suas aspirações; enquanto isso não acontecer, não há alternativa a reduzir essas aspirações materiais – ou seja, educar as pessoas para menos consumo e mais poupança – e é nessa fase que nos encontramos neste momento.

Para ser justo, o “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones toca este ponto, na sua parte final. O que talvez não explicite suficientemente é que para que tudo isto evolua favoravelmente, precisamos não de menos mas de melhores produtos financeiros que atraiam mais poupança; não de menos, mas de mais acesso a capital financeiro, que permita às empresas formar novo capital produtivo que aumente a nossa produtividade e competitividade. Para isso, precisamos de um sector financeiro mais forte e não de o restringir desnecessariamente.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.