A sinodalidade como profecia social

As práticas de sinodalidade constituem uma verdadeira profecia social face a tendências dominantes, oferecendo “um contributo peculiar na procura de respostas a muitos desafios que as sociedades devem enfrentar e na construção do bem comum.

Escrevo estas breves notas após ter dado uma primeira leitura, completa sim, mas ainda necessariamente apressada e não suficientemente aprofundada, ao Documento final (Df a partir daqui) da Segunda Sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Esta, como sabemos, buscou discernir sobre os temas da comunhão, participação e missão para a edificação de uma Igreja sinodal. Procuro, também eu, a propósito da Assembleia Sinodal há pouco terminada, e como já foi referido aqui por outros articulistas, resistir à tentação de encolher os ombros e concluir que “a montanha pariu um rato” e acreditar com todas as forças que “ainda só estamos no início”.

Acreditar, sempre, que o melhor ainda está por vir não pode ser, como disse há dias o teólogo Tomás Halík em Lisboa, um otimismo bacoco de quem passa a vida a repetir que “tudo vai correr bem”. É antes a coragem de viver permanentemente com algumas questões em aberto, contra a tentação de ter sempre respostas claras e distintas a dar. É assumir a necessidade “da paciência e da força para suportar a situação difícil”, como apontou Halík, o que, por vezes, até pode implicar que a única coisa que podemos dizer para sermos honestos é: ainda não parou de piorar antes de poder começar a melhorar… E isto pode aplicar-se em alguns momentos a determinados aspetos da vida da Igreja a que pertencemos, aos pequenos grandes dramas da nossa existência pessoal e familiar, ou aos tremendos desafios do mundo contemporâneo.

Procurei, por isso, ler o Df não em busca de respostas a determinadas questões estruturais “internas” ou do modo como a Igreja se define e organiza, importantes e decisivas como estas possam ser e, de facto, são. Ainda há dias tivemos a desafiadora oportunidade de refletir acerca de algumas delas na sessão com o teólogo Andrea Grillo organizada pelo Ponto SJ, tais como “o modo de compreender a autoridade do sucessor de Pedro”, as “formas inéditas de vida em comum” ou “as funções ministeriais da mulher”, para citar apenas algumas. Empenhado na missão de procurar acompanhar, a partir de um Dicastério vaticano, as Igrejas locais de África na sua busca de superação dos obstáculos ao desenvolvimento humano integral – tais como violência e guerra, violações de direitos humanos, pobreza, desemprego, insegurança, migração forçada, emergências humanitárias, doenças e degradação ambiental, entre outros – perguntava-me: que posso colher do Df que sirva de inspiração para esta missão? Comento apenas três pontos absolutamente iniciais que se impuseram à minha atenção neste Documento que nos foi proposto como síntese da Assembleia, ao qual, num gesto inédito, o Papa atribuiu todo o peso da autoridade magisterial a si reservada: “O Documento Final faz parte do Magistério ordinário do Sucessor de Pedro […] e, como tal, peço que seja aceite”.

1. Partir do “sofrimento que nos rodeia e nos atravessa” para dar testemunho do que se viveu – Foi para mim reconfortante verificar que desde as primeiríssimas frases, o Df evidencia que os trabalhos do Sínodo partiram do substrato real da vida das pessoas e dos povos no momento presente e não de abstratas discussões teológicas. “Fixar o olhar no Senhor não afasta dos dramas da história” (n. 2), antes nos torna necessariamente mais sensíveis às muitas formas de sofrimento: “os rostos das crianças aterrorizadas pela guerra, o choro das mães, os sonhos desfeitos de tantos jovens, os refugiados que enfrentam viagens terríveis, as vítimas das alterações climáticas e das injustiças sociais” (id.). Isto também porque muitos dos participantes no Sínodo provinham das geografias onde estes sofrimentos são mais agudos, estando “pessoalmente envolvidos com as suas famílias e povos nestes trágicos acontecimentos” (id.). E continuam a pedir-nos que não esqueçamos os dramas vividos pelas suas Igrejas locais. A seguir com muita atenção as conclusões do trabalho do grupo de estudo n. 2 “A escuta do grito dos pobres e da terra” que, como os demais grupos, é apresentado como fazendo já parte da “fase de implementação” do Sínodo (n. 8).

Digna de realce é também a lista dos pecados que são citados como tendo sido chamados pelo nome durante a Vigília Penitencial que deu início a esta Assembleia: pecados “contra a paz, a criação, os povos indígenas, os migrantes, as crianças, as mulheres, os pobres, a escuta, a comunhão” (n. 6). Insisto no convite a prestarmos muita atenção aos pecados que os membros do Sínodo nomearam para justificar a necessidade de arrependimento e conversão. Pecados sobretudo na esfera social, não no âmbito íntimo ou aqueles da área sexual que a nossa formação eclesial tendeu a mais valorizar.

Não estamos, por isso, de modo nenhum, perante um documento primariamente de ensino ou esclarecimento de questões de doutrina ou de disciplina, mas de um testemunho daquilo que se viveu durante este percurso sinodal como resposta aos males do mundo e às necessidades da Igreja e que foi “fruto do nosso discernimento” visando “um renovado impulso missionário” (n. 3).

2. “A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica” – Um outro ponto que me pareceu muito relevante foi o da inclusão do princípio básico da doutrina social da Igreja da opção preferencial pelos pobres na Parte I dedicada ao “coração da sinodalidade”. E tal opção é claramente apresentada não como resultado de qualquer orientação ideológica ou análise sociológica, mas como brotando necessariamente da nossa fé em Cristo. Neles, os pobres, “a comunidade cristã encontra o rosto e a carne de Cristo” (n. 19). As consequências a tirar são claras: “A Igreja é chamada a ser pobre com os pobres (…), a escutá-los e a considerá-los sujeitos da evangelização” (id.), bem como a integrar na composição dos órgãos de consulta e de decisão os que “vivem em condições de pobreza ou marginalização” (n. 106).

3. A fraternidade como resposta à crise da participação e ao individualismo, ou a sinodalidade como “profecia social” – Logo no início deste Df, o Concílio Vaticano II é apresentado como a grande inspiração do atual processo sinodal: “o caminho sinodal está a pôr em prática aquilo que o Concílio ensinou sobre a Igreja como Mistério e Povo de Deus, chamamento à santidade através de uma conversão contínua que vem da escuta do Evangelho” (n. 5). E é assim que os grandes textos conciliares são amplamente citados para mostrar como a Igreja recebe de Cristo “a responsabilidade de ser o fermento eficaz dos laços, das relações e da fraternidade da família humana” (n. 20) num tempo em que impera a “crise da participação” – não nos sentimos “parte e atores de um destino comum” (id.) – e o individualismo. Num tempo, também, podemos acrescentar, de crise da confiança nas instituições e nos processos democráticos, de desvalorização das soluções multilaterais e negociadas para as divergências e os conflitos em prol do uso da força, de recuo para soluções nacionalistas e autocráticas que julgávamos ultrapassadas, de retiro para identitarismos exclusivistas. Estes também alguns dos temas mais caros ao pensamento do Papa Francisco.

Mais à frente, o texto volta a falar “de lógicas relacionais distorcidas e por vezes opostas às do Evangelho” (n. 53), e dos males que afligem o nosso mundo, com as guerras e conflitos à cabeça, males que atingem a própria Igreja, como ficou patente, por exemplo, na crise dos abusos (n. 55). As práticas de sinodalidade, sustenta o Df, constituem, assim, uma verdadeira “profecia social” (n. 47) face a estas atuais tendências dominantes, oferecendo “um contributo peculiar na procura de respostas a muitos dos desafios que as sociedades contemporâneas devem enfrentar e na construção do bem comum” (id.). Mesmo no final, o Documento volta a repropor esta bela ideia da sinodalidade como “profecia social”, que “inspira novos caminhos também para a política e a economia, colabora com todos aqueles que acreditam na fraternidade e na paz, num intercâmbio de dons com o mundo” (n. 153).

É ainda relevante notar a relação sugerida entre sinodalidade e ecologia integral, que se complementam na medida em que “assumem ambas a perspetiva das relações e insistem na necessidade do cuidado dos vínculos” (n. 48). A partilha de recursos a diversos níveis é outra exigência deste modo sinodal de a Igreja se entender enquanto “rede de relações através da qual circula e se promove a profecia da cultura do encontro, da justiça social, da inclusão dos grupos marginais, da fraternidade entre os povos, do cuidado da casa comum” (n. 121). Se conseguirmos, como Igreja e nas nossas comunidades, ir colocando pouco a pouco em prática estes ideais, certamente que o Sínodo terá parido mais do que um rato…

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.