A sensibilidade social e a identificação com Cristo em Inácio de Loiola

A sensibilidade social de Inácio irá ser reelaborada à luz do discernimento espiritual, de modo a acertar com a vontade de Deus na resposta a dar aos desafios do tempo.

A sensibilidade social de Inácio de Loiola tem as suas raízes numa experiência de vida mendicante, em total dependência da Divina Providência, buscando na imitação da vida dos santos a identificação com Cristo. Mais tarde, na fase da maturidade, a sensibilidade social de Inácio irá ser reelaborada à luz do discernimento espiritual, de modo a acertar com a vontade de Deus na resposta a dar aos desafios do tempo.

Nascido numa família da aristocracia basca, Inácio de Loiola (1491-1556) seguiu a carreira militar. Ao longo da sua carreira e da sua história de vida podemos identificar um conjunto de diferentes etapas marcadas inicialmente por um certo declínio para, finalmente, se abrir a uma nova realidade.

Inicia com uma etapa áurea (1506-1517), durante a qual Inácio esteve ao serviço do Contador Mor do Rei D. Fernando, o Católico, tendo tido o privilégio de conhecer o fausto da corte.

Numa segunda etapa (1517-1521), devido a contingências políticas, Inácio é afastado do ambiente da corte, passando a estar ao serviço do Vice Rei de Navarra. Durante o cerco de Pamplona pelas tropas francesas, Inácio combate com extrema bravura na defesa da cidade, acabando contudo por ser conquistada e Inácio ser gravemente ferido por um projétil de canhão (1521). De acordo com uma outra versão, Inácio terá sido ferido num combate corpo a corpo, em que Deus o terá atingido na coxa (Gn 32)!

Numa terceira etapa (de maio de 1521 a fevereiro de 1522), Inácio é transportado à Casa Torre de Loiola, onde é acolhido pelo seu irmão (o morgado) e pela cunhada. A convalescença arrasta-se ao longo de nove meses, obrigando-o à imobilidade devido à fratura de uma perna. Este acontecimento marca o início da sua conversão. Nesta situação, Inácio experimenta um enorme tédio. Inácio é um homem de grandes sonhos. Pede então que lhe tragam romances de cavalaria para se distrair. Inácio viveu num ambiente em que se desenrolavam esse tipo de romances, identificando-se ele próprio com o cavaleiro que leva a cabo uma série de façanhas. No entanto, em casa existia apenas uma vida de Cristo (Vida Christi, de Ludolfo da Saxónia, o Cartuxo) e uma vida dos santos (Flos sanctorum, do dominicano Jacobo de Varazze). Inácio teve que se conformar com a literatura disponível. Fruto destas leituras, surge o desejo de peregrinar à Terra Santa, adotando um modo de proceder mendicante, para aí permanecer até ao fim dos seus dias. Inácio quer penitenciar-se dos excessos e escândalos da sua vida passada. Como consequência, temos em Inácio uma mudança radical de imaginário: o cavaleiro andante que se exercitava em feitos heroicos, sacrificando a sua vida ao serviço do rei e da dama dos seus sonhos, vai agora dar lugar ao peregrino que segue a Cristo em suma pobreza.

Como consequência, temos em Inácio uma mudança radical de imaginário: o cavaleiro andante que se exercitava em feitos heroicos, sacrificando a sua vida ao serviço do rei e da dama dos seus sonhos, vai agora dar lugar ao peregrino que segue a Cristo em suma pobreza.

Mesmo após a convalescença, Inácio nunca chegará a recompor-se totalmente, ficando a coxear para o resto da vida. No entanto, esta limitação não o detém. Pelo contrário, ele torna-se um peregrino incansável a ponto de percorrer a pé longas distâncias, nomeadamente Espanha, França, Itália e ainda a Flandres, Inglaterra e Terra Santa.

No final da convalescença, abandonada a carreira militar, Inácio torna-se peregrino e mendigo. Como militar, Inácio precisava de se exercitar, a fim de estar em forma física. Agora a disciplina e a vida de oração tem um outro objetivo: a identificação com Cristo. Esta nova etapa é marcada por um modo de vida mendicante, no qual ia partilhando o pouco que tinha com outros mendigos menos afortunados. Fixa-se durante alguns meses em Manresa, vivendo numa gruta. Junto à margem do rio Cardoner recebe uma graça especial: a iluminação do entendimento (1522). Fruto desta graça, Inácio redige o primeiro esboço dos Exercícios Espirituais. No ano seguinte concretiza a peregrinação à Terra Santa (1523). Os primeiros companheiros de Inácio (o grupo fundador) irão também passar por esta experiência de peregrinação mendicante, albergando-se e prestando serviço em hospitais. Esta experiência faz também parte da formação dos noviços.

Agora a disciplina e a vida de oração tem um outro objetivo: a identificação com Cristo.

A Inquisição proíbe Inácio de propor os Exercícios Espirituais enquanto não tiver feito os devidos estudos. Assim, dá-se uma mudança radical: Inácio, já com a idade de 37 anos, chega a Paris para se dedicar a tempo inteiro aos estudos (1528-35). Inácio vai precisar de recorrer a amigos e a mecenas para lhe financiarem os estudos. E começava assim uma nova etapa em que, por um lado, é constrangido a estudar e, por outro, dá-se conta que os estudos, porque absorventes, não são compatíveis nem com uma vida mendicante, nem com uma vida apostólica dispersa. Assim, a perspetiva acerca dos estudos irá também mudar: mais do que um requisito, deveria permitir maior fecundidade apostólica. Há um discernimento em Inácio que se vai continuamente apurando.

Assim, a perspetiva acerca dos estudos irá também mudar: mais do que um requisito, deveria permitir maior fecundidade apostólica. Há um discernimento em Inácio que se vai continuamente apurando.

Às portas de Roma, na visão de La Storta, Inácio recebe a graça do chamamento a servir Cristo carregando a cruz (1537). Inácio de Loiola testemunha uma sensibilidade social que não é uma faceta pontual e esporádica. Pelo contrário, mostra uma mundividência atenta ao sofrimento do mundo, plasma um estilo de vida pronto a dar resposta às necessidades e traduz-se em obras concretas. Face às tragédias do mundo, a Santíssima Trindade decide a encarnação (cf. “Contemplação da Encarnação”, Exercícios Espirituais 101-109). Num sentido mais amplo, o exercitante é convidado a prolongar a encarnação no hoje da sua vida (EE 109).

Existe um nexo entre a ferimento grave de Inácio militar no cerco de Pamplona (a 20 de maio de 1521) e Inácio que serve nos hospitais, onde se tocam as chagas deste mundo (cf. José Maria Rodríguez Olaizola, Inácio de Loiola, nunca só). Celebrámos recentemente (2021) o quinto centenário do ferimento de Inácio no cerco de Pamplona. Trata-se de uma ferida fecunda da qual Inácio renasceu como “homem novo” e que por sua vez levou à fundação da Companhia de Jesus.

Celebrámos recentemente (2021) o quinto centenário do ferimento de Inácio no cerco de Pamplona. Trata-se de uma ferida fecunda da qual Inácio renasceu como “homem novo” e que por sua vez levou à fundação da Companhia de Jesus.

Progressivamente a peregrinação exterior vai dando lugar a uma peregrinação interior. A fixação obsessiva pela cidade de Jerusalém, onde Jesus morreu e ressuscitou, dá lugar ao novo culto em espírito e verdade (Jo 4, 23-24), em que as coordenadas espaciais se tornam secundárias. Passa sim a ser relevante a comunhão com o Pai, pelo Filho, no Espírito e o discernimento da vontade de Deus.

Quando Inácio se fixa em Roma (de 1537 até à morte em 1556), a sensibilidade social traduz-se numa resposta mais discernida e organizada, nomeadamente quanto à fome que se abateu sobre região de Roma em 1538, tendo atingido sobretudo os camponeses; na instrução das crianças de rua e fundação de orfanatos; na fundação da Obra de Santa Marta, empenhada em recuperar mulheres arrancadas à prostituição; condenando a descriminação dos judeus e dos cristãos novos, inclusive vários dos primeiros jesuítas com cargos importantes no governo da Companhia tinham ascendência judia, nomeadamente Diego Laínez, Juan-Alphonso de Polanco e Pedro de Ribadeneira (cf. Pedro Miguel Lamet, Para alcançar amor, Inácio de Loiola e os primeiros jesuítas).

Inácio vai recapitular e integrar em si próprio a história da espiritualidade cristã desde os primeiros séculos até ao princípio da modernidade, nomeadamente: Padres do Deserto, Bento de Núrcia, Bernardo de Claraval, Francisco de Assis e o livro da Imitação de Cristo. Mais ainda, vai inaugurar um novo estilo de vida religiosa na Igreja.

O longo discernimento espiritual sobre a pobreza que ocupa Inácio de 1544-1545, vai permitir-lhe distinguir entre, por um lado, as exigências do voto de pobreza de cada jesuíta e, por outro, a necessidade de prover ao financiamento das diferentes obras da Companhia de Jesus que, direta ou indiretamente, procuram servir a Cristo nos mais pobres. Este importante discernimento comprova que a sensibilidade social de Inácio de Loiola decorre da sua identificação com o Senhor: “Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo rico, fez-se pobre, para nos enriquecer com a sua riqueza” (2 Cor 8, 9). Mas o reverso também é válido, a ponto de Inácio de Loiola afirmar que “a amizade dos pobres torna-nos amigos do Rei eterno” (Aos Padres e Irmãos de Pádua – Roma, 7 de agosto de 1547). Na redação das Constituições da Companhia de Jesus, Inácio irá dizer que a pobreza é muro e mãe: é muro que nos defende das investidas do mundo e é mãe fecunda em favor do reino de Deus na Igreja.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.