Fui apanhada de surpresa por um colega, no primeiro café da manhã, que me perguntou se já tinha visto um anúncio que estava a passar na televisão e a causar agitação nas redes sociais.
Lá vi, na pressa do relógio, e a minha primeira impressão foi que estava bem feito, produzido por gente que sabia o que estava a fazer. Não tinha nada de amador, antes pelo contrário. Mas também senti algum incómodo. Como se algo não estivesse “a bater certo”, diríamos nós, numa conversa entre amigos. Disse-lhe que logo que pudesse veria tudo, com mais calma. E assim aconteceu. O anúncio é feito a partir de um videoclip, três minutos para contar uma história, com música tocada e cantada. A história tem uma personagem principal, com nome próprio. As personagens secundárias, o ritmo das imagens e da música, a cor que permanece como fio condutor, tudo terá sido pensado para se obter o melhor resultado possível, que neste caso em concreto é um manifesto contra o aborto.
O incómodo inicial cresceu. Porque a forma como a história está contada é demasiado violenta, as imagens são impactantes, o sofrimento da rapariga que assume o papel principal é palpável. Naqueles momentos só me conseguia lembrar das palavras do Papa Francisco, repetidas pelo Papa Leão XIV, sobre a necessidade de “desarmar a comunicação”, de desarmar as palavras, as imagens, as histórias que contamos. E continuei a refletir. É verdade que não estamos perante uma notícia de um jornalista, mas sim perante um trabalho de comunicação, que se produz com regras bem mais próximas da linguagem comercial.
Mais tarde liguei a um amigo. Perguntei-lhe se tinha visto o anúncio, ou o videoclip. Respondeu-me que não, mas que sabia que era contra o aborto e estava bem feito, logo era bom, certamente. Pedi-lhe que procurasse ver com atenção.
Devo dizer que sou absolutamente e convictamente a favor da vida. Desde o momento da conceção até à morte natural. A minha filha mais velha ainda se lembra de andar de mão dada comigo nas primeiras marchas pela vida e votei sempre contra nos referendos para a despenalização do aborto.
Nesta matéria, o que sempre me motivou foi a defesa da vida, a defesa da vida de uma criança por nascer, a defesa das raparigas e das mulheres grávidas.
Nesta matéria, o que sempre me motivou foi a defesa da vida, a defesa da vida de uma criança por nascer, a defesa das raparigas e das mulheres grávidas.
O que sempre me motivou foi saber como é difícil aceitar uma filha solteira que fica grávida, numa relação ocasional, ou reconhecer a dificuldade de ter conversas sérias sobre fidelidade e castidade com filhos adolescentes. E apesar da luta contra o aborto ser uma causa identitária da Fé que professo – recordo-me muitas vezes da coragem da Santa Teresa de Calcutá, que se oferecia para receber todos os bebés em perigo de vida, no seio de suas mães – custa-me que seja usada como se fosse uma bandeira que se hasteia pelos caminhos da vida, mas da vida dos outros.
Teremos sempre de nos aproximar da realidade do aborto com imensa humildade e compaixão. Nunca saberemos dimensionar o sofrimento de quem toma uma decisão tão dramática como esta. Nunca saberemos o que se esconde por detrás de tantas aparências de força ou de indiferença, de tantas mulheres e raparigas que abortam. Pessoalmente, desconheço esta realidade da vida de mulheres como eu, seja de forma próxima ou distante, escondida ou assumida. E também por esta razão defendo uma contenção de palavras e de críticas, que em nada beliscam as minhas convicções e sentimentos.
Vi uma segunda vez o dito videoclip. E percebi a razão pela qual me senti incomodada. A principal mensagem que passa ao comum dos consumidores deste tipo de linguagem, mais do que atingir o drama do aborto, atinge as mulheres que praticam o aborto. E isto sim parece-me algo completamente errado.
Teremos sempre de nos aproximar da realidade do aborto com imensa humildade e compaixão. Nunca saberemos dimensionar o sofrimento de quem toma uma decisão tão dramática como esta.
Estou convicta de que não defendemos a nossa causa, a causa da vida, acusando as mulheres que praticam o aborto e ou o Estado que as ajuda, ou não, a praticarem este crime. Não defendemos a causa da vida, fazendo videoclips e anúncios com enfermeiras agressivas e zangadas, com as mãos manchadas de sangue e caixotes do lixo para onde atiram sacos de plásticos com restos de bebés. O produto em causa obedece às regras de filmes de terror, em que somos confrontados com o sofrimento, no meio asséptico de um hospital. Até a cor foi bem escolhida.
Será que os produtores deste videoclip pensaram, por segundos, no que sentiria uma mãe – mais ou menos nova, com uma vida estável ou instável, casada ou amante, equilibrada ou desequilibrada – ao ver estas imagens, ao ouvir aquela música, ao rever a sua história? Não me parece.
A causa da vida defende-se com a vida. A causa da vida precisa de um Estado que ajude as mulheres grávidas, que lhes dê proteções laborais, que as ajude economicamente, que considere urgente aumentar a natalidade e dê as ajudas materiais que são necessárias para que tal aconteça.
A causa da vida precisa de famílias que conversem sobre castidade e fidelidade. Mas que conversem também sobre comportamentos de risco, contraceptivos e educação sexual. A causa da vida precisa de pais e de mães que saibam o que devem fazer, perante uma filha grávida, ou um filho que engravidou alguém. A causa da vida precisa de gente consciente de que a moral sexual professada não é exatamente igual à vivida…
Consigo supor que exista boa intenção por parte de quem defende este tipo de luta contra o aborto. Mas aprendi desde pequena que nem sempre os fins justificam os meios. E quando se torna necessário procurar justificações para algo que se fez, devem soar alarmes dentro de nós. Atualmente sinto como grande alarme a urgência de desarmar a comunicação. E, neste caso, estamos perante uma comunicação claramente armada.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.