“Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas”, refere o Papa Francisco, na carta que escreveu ao povo de Deus, a 20 de agosto de 2018.
De 21 a 24 de fevereiro, terá lugar no Vaticano uma reunião, convocada pelo Papa Francisco, dos presidentes das Conferências Episcopais da Igreja Católica sobre o tema da “proteção de menores”. Na viagem de regresso das recentes Jornadas Mundiais da Juventude, o Papa referiu que se tinha dado conta de que as expectativas em relação a esta reunião estão um pouco “enfatuadas”. Três pontos constituem a agenda desta reunião:
- primeiro – catequese, para que se tome consciência do drama: que significa um menino abusado, uma menina abusada. “É terrível, o sofrimento, é terrível, […] que [os bispos]tomem consciência disso.” (Papa Francisco);
- segundo – que saibam o que se deve fazer, o procedimento. Elaboração de programas gerais que sirvam e cheguem a todas as conferências episcopais: que deve fazer o bispo, que deve fazer o arcebispo, que deve fazer o presidente da conferência episcopal.
- terceiro – estabelecer protocolos claros.
Apesar deste aviso do Papa, confesso que mantenho uma expectativa considerável: cortar a direito com a cultura do encobrimento e com os que a praticam de forma a que fique claríssimo, preto no branco, a obrigação incondicional de apoio às vítimas e a necessidade de reparação. Esta obrigação incondicional perante a vítima integra, por outro lado, a preocupação com o autor do crime. O reconhecimento da culpa e o ressarcimento da vítima, por parte do agressor, serão sempre o primeiro passo no processo de repararação do culpado. Pelo contrário, o encobrimento, seja por que razão for, agride ainda mais a própria vítima, protege levianamente o agressor e, introduzindo um registo de impunidade, facilita a propagação do próprio crime.
“E nós, resolvendo o problema na Igreja, tomando consciência, ajudaremos a resolvê-lo também na sociedade, nas famílias, onde a vergonha faz encobrir tudo.” (Papa Francisco)
“E nós, resolvendo o problema na Igreja, tomando consciência, ajudaremos a resolvê-lo também na sociedade, nas famílias, onde a vergonha faz encobrir tudo.” (Papa Francisco)
É preciso esperar pelos resultados deste encontro.
No entanto, vale a pena considerar que a prática do encobrimento é uma praga! Uma praga que afeta muitos, se não todos, os âmbitos em que existe exercício de poder. Quem me dera que o Papa tivesse razão quando diz que é a vergonha que faz encobrir tudo! Não sei se será a única ou a primeira causas. Creio que a vergonha revela, pelo menos, a consciência de nódoa, de culpa. A vergonha, se não se mantiver no campo do privado, pode levar à confissão e travar a repetição do crime.
Eu diria, que a praga do encobrimento a que assistimos em muitos dos âmbitos de poder não é vergonha. É completa indiferença pela vítima, notório desprezo pelo sistema e poder judiciais e total irrelevância da honra e da verdade.
O que tem acontecido na banca portuguesa, com mais o recente caso da Caixa Geral de Depósitos (CGD), na política, devido à promiscuidade entre poderes, é possível graças a esta indecorosa praga social. A prática de abafar, de usar da lei da rolha, de montar um sistema de agulha no palheiro, de manter em segredo ou de falsamente testemunhar tem vindo a esvaziar a confiança nas instituições, e, infelizmente, também no Estado.
Cada um de nós é chamado a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para irradicar este mal social e gerar uma cultura incapaz de ocultar aquilo que deve ser desmascarado, desvendado, confessado, exposto, denunciado. Não é aceitável “encobrir” pela omissão.
É chegado o momento de pedir contas, de dizer basta e de agradecer a coragem de todos aqueles que têm trabalhado arduamente, ao longo dos últimos anos, para desvendar e desmascarar as “malhas escuras” dos poderes e das instituições, nos quais se inclui a Igreja.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.