A perda de humanismo na nossa relação com os imigrantes - Ponto SJ

A perda de humanismo na nossa relação com os imigrantes

Os imigrantes não são números, nem recursos. São pessoas. A sua presença em Portugal não é apenas conveniente ou necessária, é legítima e profundamente humana.

Ao longo de mais de duas décadas de investigação sobre migrações, acompanhei fluxos migratórios, vagas de diferentes tipos de migrantes, histórias de vida, percursos de mobilidade e experiências de quem escolheu Portugal como destino. Neste caminho, tornou-se evidente um paradoxo que deveria inquietar-nos: enquanto o país se apresenta como acolhedor e cosmopolita, ganha prémios de integração ou se projeta a si mesmo como um oásis acolhedor num deserto de políticas humanistas, desenvolvem-se práticas institucionais e discursos públicos, cria-se uma inércia, um discurso de ódio ou um nada fazer que, muitas vezes, desumanizam os imigrantes.

O tratamento que damos aos imigrantes oscila entre dois extremos igualmente problemáticos. Por um lado, são valorizados enquanto trabalhadores úteis para a economia, discretos, produtivos, pouco exigentes. Por outro, são vistos como potenciais ameaças à coesão social, como beneficiários indevidos de subsídios e ávidos utilizadores de serviços públicos ou, mais recentemente, como risco securitário com forte ligação ao mundo do crime ou como agentes de uma insana teoria de substituição demográfica. Em qualquer dos casos, deixam de
ser pessoas para se tornarem funções sociais. Deixam de ser pessoas para serem meros números em estatísticas. Deixam de ser pessoas para ser memes ou anedotas nas redes sociais. Deixam de ser pessoas para ser imagens ícones de si próprios, estereótipos em imagens mil vezes retratadas. E é neste processo de criar no imigrante uma projeção do que ele não é, que o humanismo, fundamento das sociedades democráticas, se vai perdendo.

A substituição do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) pela Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA) foi saudada como uma mudança de paradigma. Contudo, nem o SEF era “o” problema nem os problemas desapareceram com o SEF. Muitos dos problemas estruturais persistem, nomeadamente, a lentidão dos processos de regularização, a falta de resposta célere nos serviços públicos, tantas vezes por exaustão dos próprios serviços, uma invisibilidade legal prolongada com custos para os imigrantes e para o país. A incapacidade que ainda se mantém de construir uma migração segura e regulada como alternativa a percursos migratórios marcados por ilegalidades, exploração e enganos. Em vez de reconhecimento, os imigrantes enfrentam a sua substanciação como “bodes expiatórios” para todos os problemas da sociedade e, muitas vezes, são mesmo tratados como “problemas a resolver” e não como cidadãos com direitos, não como seres humanos.

A narrativa oficial disse-nos, ao longo dos anos, que Portugal “integra bem”. Prémios como os do MIPEX, rankings globais de integração em que o país aparecia no topo, não nos deixaram compreender o principal: integrar não é apenas permitir acesso ao mercado de trabalho e acreditar que o tempo é o principal agente de integração social sem (quase) nada mais fazer. É garantir direitos e deveres iguais, participação política, proteção contra a discriminação, uma garantia plena de inclusão social, isto é, de ensaiar incluir impedindo a exclusão social, de incluir quem chega garantindo a coesão social e societal. De fazer o que ainda não foi feito: garantir aos portugueses uma cidadania plena, com os seus direitos constitucionais plenamente construídos, e, aos imigrantes, um plano de acesso aos mesmos direitos constitucionais.

Espera-se dos imigrantes recato, gratidão e silêncio. Quando se organizam, protestam ou denunciam injustiças, rapidamente deixam de ser “bons imigrantes” para se tornarem incómodos aos olhos de quem só aguardava uma oportunidade para os desacreditar. Quando um imigrante comete um crime torna-se uma sinédoque de toda a imigração.

As representações sociais, incluindo as mediáticas, também contribuem para esta desumanização. O imigrante é muitas vezes reduzido a estereótipos: o trabalhador incansável, o delinquente em potencial, o usurpador de apoios sociais, o abusador compulsivo do Estado social. Estas imagens, mesmo quando não explícitas, infiltram-se nas decisões institucionais, nas políticas públicas e no quotidiano de quem vive em Portugal. O racismo ou a xenofobia institucional raramente gritam, mas estão claramente presentes nas omissões, nos atrasos, na indiferença.

As representações sociais, incluindo as mediáticas, também contribuem para esta desumanização. O imigrante é muitas vezes reduzido a estereótipos: o trabalhador incansável, o delinquente em potencial, o usurpador de apoios sociais, o abusador compulsivo do Estado social.

Importa recentrar o debate. Os imigrantes não são números, nem recursos. São pessoas. Têm famílias, afetos, medos, sonhos. A sua presença em Portugal não é apenas conveniente ou necessária, é legítima e profundamente humana (como nós, portugueses, pela nossa história coletiva, deveríamos, a todo o tempo, recordar). Reconhecer os imigrantes que acolhemos enquanto sujeitos de direitos é um imperativo moral e democrático.

E há uma dimensão que não podemos esquecer: à medida que desumanizamos os imigrantes, desumanizamo-nos também. Perder a capacidade de reconhecer a dignidade do outro é abrir espaço à erosão da nossa própria humanidade. No final do dia, as sociedades que tratam as pessoas como problemas acabam por comprometer os próprios fundamentos da democracia.

Se queremos uma sociedade coesa, justa e aberta ao mundo, precisamos de reencontrar o humanismo nas nossas práticas, políticas e relações quotidianas. Não basta acolher, é preciso respeitar, ouvir e garantir condições de vida dignas para todos. Porque, ao perdermos humanidade, deixamos, em certa medida, de ser humanos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.