O relativismo – uma das características mais perturbadoras da deriva pós-modernista em que as sociedades ocidentais estão cada vez mais mergulhadas – enfraquece progressivamente a relação entre as palavras e os factos; aumenta a falta de pudor na prática da omissão e da mentira; e gera um crescente medo de falar sobre isto, desafiando o politicamente correto, por muitos que mantêm estrutura e lucidez moral. Particularmente grave tem sido testemunhar a chegada a posições de poder político de pessoas que lidam dificilmente com a verdade (não se ignora que o problema tem outras determinantes, entre as quais incentivos perversos para o desempenho de funções políticas).
Foquemo-nos no nosso país e na (in)justiça económica.
Poder-se-ia falar dos lapsos de políticos na declaração das suas incompatibilidades profissionais; na negociação de contratos em nome do Estado – desequilibrados em desfavor deste, no imediato e em compromissos futuros – por políticos que mantêm interesses em entidades com que estabelecem esses contratos; na concessão de créditos por parte de gestores bancários nomeados politicamente que, pelos montantes, riscos e grau de concentração, não servem a gestão mas outros interesses; na adjudicação de projetos de investimento publico – muitos com elevado impacto económico, ambiental e social – por políticos corrompidos; etc. Em todos esses casos há falta de verdade, e deles decorrem injustiças: algumas pessoas obtêm ganhos indevidos, aproveitando o poder de que foram investidas para supostamente servir a Nação.
Olhemos não para estes casos individuais, mas sim para a política económica actual, designadamente para a política orçamental. Disse-se no início desta legislatura que se ia ”virar a página da austeridade”, e que isso permitiria que o país saísse da estagnação económica.
Esqueçamos que o país já estava claramente a sair da estagnação desde 2013; discutamos a veracidade da proposição de que se “virou a página da austeridade”; e tentemos ver consequencias sobre a (in)justiça económica.
O saldo das contas do Estado passou de -4,4% do PIB em 2015 para -2,0 e -3,0% do PIB em 2016 e 2017. Neste último ano, se não tivesse havido a necessidade de injectar capital na Caixa Geral de Depósitos, o saldo teria sido -1,9% do PIB. No entanto, para avaliar a natureza da política decidida em cada ano, temos de calcular a variação face ao ano anterior, não do saldo, mas do saldo orçamental expurgado de três efeitos: (i) o passado – retirando os juros da dívida pública, que dependem da dívida herdada e das taxas de juro em vigor nos mercados; (ii) o ciclo económico – retirando os efeitos automáticos decorrentes da conjuntura, como a redução de despesas com subsídios de desemprego e o aumento dos impostos quando a conjuntura melhora; e (iii) as medidas temporárias, não recorrentes e especiais – como receitas com alienações ou injecções de capital em instituições públicas.
Chega-se então ao saldo primário estrutural. Ora este, se diminuiu de 2,3% do PIB em 2015 para 2,1% em 2016 – uma ligeira expansão que, apesar de tudo, seria difícil de classificar como uma “viragem de página da austeridade” – aumentou para 2,6% do PIB em 2017. Aliás, desde 2012 apenas em 2014 o excedente primário estrutural foi maior (2,9%) do que em 2017. Em suma: ao contrário do que tem sido dito, a política orçamental continua a ser de austeridade, visando excedentes primários idênticos aos dos anos anteriores.
Não discuto que a austeridade continua a ser necessária. As contas do Estado estão longe de estar sustentáveis, o Estado e o país continuam muito vulneráveis a choques desfavoráveis, e há tratados e regras europeias que temos de cumprir. A questão é que, para além de não ser éticamente correta, a falta de verdade sobre o todo (da política orçamental) implica falta de verdade sobre as partes (componentes das contas do Estado) e impede o escrutínio sobre a justiça das políticas em curso.
Não querendo maçar (muito mais) os leitores com tecnicalidades, o essencial pode resumir-se assim. Após ascender a 34,4% do PIB em 2015, de 2016 para 2017 a receita fiscal e contributiva aumentou de 34,2% do PIB para 34,5% do PIB; esta é a mais elevada carga fiscal de sempre da democracia portuguesa; em particular, no “aumento brutal de impostos” de 2013 (o pico da austeridade), a carga passou de 31,7 para 34,0%; a conclusão é clara: é impossível falar-se de fim da austeridade quando a carga fiscal é ainda maior do que no pico da austeridade. A despesa total primária (sem juros da dívida pública) aumentou de 40,8 para 42,0% do PIB de 2016 para 2017, mas continua muito abaixo dos 43,6% de 2015 (já para não falar dos 46,9% de 2014); a conclusão é a mesma: não é possível falar de fim de austeridade quando o Estado gasta menos.
A forma como a austeridade foi mantida é ainda mais relevante. Do lado das receitas, a diminuição dos impostos sobre rendimentos e património (ainda assim mais elevados, em 2016 e 2017, do que antes de 2013), foi conseguida com um aumento dos impostos sobre o consumo; ainda que aquela beneficiasse apenas as famílias mais pobres, estas são sempre as mais penalizadas pelos aumentos de impostos sobre o consumo, porque são as que consomem uma maior parcela do seu rendimento. É certo que a substituição de impostos diretos por indiretos é defendida por muitos economistas, por razões de eficiência económica, mas é muito discutida pelos seus efeitos sociais. Apesar de supostamente dar prioridade à justiça social, o governo implementa essa substituição sem a assumir e sem discutir o seu potencial impacto social.
Do lado das despesas primárias (os juros permitem hoje uma poupança de cerca de 1% do PIB face a 2012-14), a contenção de 2016 foi conseguida com alguma redução das prestações sociais (pelo efeito da melhoria do ciclo) mas sobretudo com uma brutal diminuição do investimento público; em 2017, o investimento retomou níveis mais normais, enquanto se cortou transversalmente as despesas com as célebres cativações; também aqui há uma contradição entre ‘narrativa’ e realidade: cativações cegas que obrigam inúmeros departamentos do Estado a reduzir despesas sem qualquer plano nem escolha baseada em critérios de eficácia e eficiência bloqueiam muitos serviços públicos; a injustiça é flagrante: asfixia-se os serviços do Estado que deveriam servir mais os menos favorecidos, como hospitais e escolas (não cabe aqui entrar em detalhes, mas os dados não mentem: nos hospitais, as listas de espera aumentam, os medicamentos e materiais em geral escasseiam, o pessoal é cada vez mais insuficiente… quer porque se cortou despesas, quer porque se atrasou os pagamentos a fornecedores).
Como se explica a aparente sustentação desta falta de verdade que alimenta tantas injutiças? Uma razão técnica é que, como os orçamentos do Estado têm sido sobre-avaliados, os desvios face ao orçamentado não obrigam à discussão e aprovação no Parlamento de orçamentos retificativos. Uma razão política é que algumas forças partidárias de apoio ao governo têm obtido em troca medidas favoráveis a setores da sociedade predominantes na sua base de apoio, assim como medidas legislativas cruciais na sua agenda de engenharia social. Uma razão social e cultural é que o povo português tem uma enorme capacidade de sacrifício e pouca capacidade de mobilização e intervenção social e política.
Contudo, não falta hoje informação fidedigna e rigorosa sobre tudo isto. A nós, cristãos, cabe a responsabilidade especial de quebrar a apatia, de estarmos mais atentos e de nos manifestarmos contra toda e qualquer falta de verdade, contra toda e qualquer injustiça.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.