Foi anunciada há poucos dias pelo Governo a criação de um grupo de trabalho para a definição de uma estratégia nacional de combate à corrupção. Não se pode senão saudar a relevância dada a esta questão, que todos reconhecem como uma lacra que afeta o nosso país, minando a confiança nas instituições e perpetuando injustiças.
O debate que se seguiu a este anúncio foi particularmente polarizado em torno da chamada “delação premiada”, mecanismo que permite beneficiar quem, envolvido em situações de corrupção, colabore com a investigação policial e judicial, permitindo levar a tribunal e condenar outros arguidos. Este instrumento levanta, a meu ver, duas questões principais: o risco de transformar a atividade do sistema judicial numa contínua negociação (em detrimento do apuramento da verdade objetiva) e o problema da relação entre meios e fins, sacrificando parcialmente a justiça (desistindo de perseguir um criminoso) em nome de um maior resultado.
O próprio conceito de “delação premiada” levanta muitas perplexidades, tanto pela atribuição de um “prémio” a quem se reconheça culpado de corrupção, seja ativa ou passiva, quanto pela incitação à delação, que parece mais própria de sociedades autoritárias do que de um Estado de Direito. O grande perigo destes instrumentos é o facto de serem aplicados ainda na fase de inquérito, levando a que o “delator” permaneça totalmente isento da ação penal (o ministério público decide não levar a julgamento), impedindo a verificação dos pressupostos, a aferição do grau de culpabilidade e limitando até as possibilidades de defesa e contraditório daqueles que são efetivamente perseguidos.
Além de augurar uma extrema prudência para legislar nesta matéria, entristece-me o facto de centrar o debate – e com ele as grandes esperanças no combate à corrupção – na colaboração dos próprios corruptos que o sistema deveria perseguir. Parece-me que o foco principal de uma estratégia anticorrupção deveria estar na criação de um contexto social, político e económico onde a corrupção não possa criar raízes. Tal contexto exige, com certeza, um reforço dos meios de combate direto: maiores recursos humanos e financeiros para os órgãos policiais e judiciais (proporcionais aos meios de que dispõem os próprios criminosos…) e melhor enquadramento legal, evitando que os processos se arrastem e se percam por questões formais secundárias.
Neste campo, mais do que “proibir” situações de risco (contratação de familiares, passagem do setor público para o privado, etc.) trata-se de tornar visível, de trazer para a luz toda a atividade pública, permitindo o escrutínio de cada decisão que deve ter como fundamento o bem comum.
Mas, mais ainda, é preciso criar um clima de intolerância à corrupção e de transparência em todos os aspetos da vida pública. A atividade das instituições públicas e, em certa medida, privadas deve ser escrupulosamente submetida ao escrutínio dos cidadãos, através de instituições de controlo (Tribunal de Contas, Entidades reguladoras, Inspeções, etc.) mas também diretamente, tanto a nível individual quanto coletivo. Neste campo, mais do que “proibir” situações de risco (contratação de familiares, passagem do setor público para o privado, etc.) trata-se de tornar visível, de trazer para a luz toda a atividade pública, permitindo o escrutínio de cada decisão que deve ter como fundamento o bem comum.
A exigência de transparência por parte dos titulares de cargos públicos é, portanto, uma responsabilidade que incumbe a todos. Depende, na verdade, de cada um de nós tolerar – ou não – zonas de opacidade, comportamentos ambíguos ou decisões cuja racionalidade não pode ser comprovada. Não podemos escudar-nos detrás das leis e do sistema judicial, “deixando que façam o seu trabalho”, mas temos o dever de promover uma cultura e uma ética de verdade e seriedade. Neste sentido, poderíamos pensar no quanto estamos dispostos a fechar os olhos perante um titular de um cargo público, uma empresa, ou até um amigo que saibamos ou suspeitemos envolvidos em situações e esquemas de corrupção. Calar, aceitar, culpar o sistema podem ser caminhos fáceis, mas a longo prazo promovem a injustiça e minam a nossa vida em comum.
A corrupção, aproveitamento de uma posição privilegiada que deveria ser de serviço em benefício próprio, pode comparar-se à ferrugem que ataca o metal, corroendo-o “por dentro”. Trata-se, certamente, de um “fenómeno natural” (inevitável, dirão alguns), porque ligado à inclinação para o mal que habita no coração do homem. Este fenómeno, ao princípio, parece insignificante, mas pouco a pouco alastra e fragiliza o ferro, levando-o a perder a sua resistência original. Sabem-no os que “lutam” diariamente contra a ferrugem, mais do que eliminá-la quando ela aparece, o desafio é impedir a sua formação com tratamentos preventivos.
Assim, também o nosso combate à corrupção seja uma verdadeira promoção da honestidade e da transparência. No Natal, que estes dias celebramos, acolhemos Jesus que é a «luz que brilhou nas trevas, mas as trevas não receberam» (João 1,5). Deixemos que esta luz afaste as trevas do nosso próprio coração e, assim, possa irradiar no mundo à nossa volta, afastando as trevas da opacidade, da impunidade e da promiscuidade de interesses que sempre ameaçam a nossa vida social e política.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.