Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios,
ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas,
se não tiver amor, nada sou (1Cor 13,1-2).
Os relatos de sobreviventes de abusos sexuais por parte de representantes da Igreja repetem-se: a ferida mais dolorosa é causada pela falta de acolhimento do seu sofrimento, é o muro de silêncio, de suspeição (e, nos piores casos, de encobrimento) que encontram quando o caso chega às autoridades eclesiais. Com razão, esse é também o foco principal da tempestade mediática global em torno dos abusos na Igreja: a passividade das diversas hierarquias e a sua incapacidade de dar uma resposta adequada no momento em que tomam conhecimento de um relato ou acusação de abusos.
Em muitos casos não se trata de má vontade ou de cumplicidade declarada, mas de uma reação instintiva de medo diante do escândalo, que leva a olhar para a vítima como uma “ameaça” para a instituição e se autojustifica com a invocação de argumentos de justiça: necessidade de garantir a presunção de inocência, o bom nome de alegado abusador ou o carácter “familiar” das relações eclesiais. Mesmo quando o caso chega às autoridades judiciais, a postura permanece frequentemente numa “colaboração de mínimos” em que se suspende qualquer juízo até à conclusão do inquérito policial ou do processo penal.
É essencial reconhecer, enquanto comunidade eclesial, este tipo de dinâmicas, para as combater, de modo a poder redimir – na medida do possível – o passado e prevenir o futuro. É essencial “tomar partido”: renunciar à indiferença de uma (falsa) justiça – justamente representada como cega – e recuperar a evangélica parcialidade pelos mais pequenos e frágeis. É essencial pôr no centro a vítima. Como recordava o Papa Bento XVI – ainda que num contexto totalmente distinto – o Evangelho não admite justiça sem caridade, nem caridade sem justiça (Encíclica Caritas in veritate, 6). Olhar para o tema dos abusos sexuais (bem como de poder e de consciência) cometidos na Igreja, a partir da caridade, permite-nos formular algumas orientações, que valem para a hierarquia da Igreja, mas dizem também respeito a cada um dos seus membros.
1. Acolher a vítima
«Acolher a vítima, sempre, doa a quem doer!» Esta deve ser a regra de ouro de qualquer protocolo para a gestão de denúncias de abusos. Uma pessoa que deseja relatar uma situação de abuso, seja ela atual ou passada, deve ser incondicionalmente acolhida, e deve encontrar na instituição eclesial os canais adequados para que o possa fazer de modo fácil e conveniente. E nenhum temor às consequências, nem nenhuma suspeita acerca da credibilidade das denúncias pode servir de desculpa ou de entrave! A caridade convida e exige que a instituição eclesial, os seus responsáveis e membros, saibam reconhecer a gravidade das situações de abuso, escutar e deixar-se comover pelas histórias de sofrimento.
Quando se fala em formação e prevenção, muito do trabalho a desenvolver diz precisamente respeito ao desenvolvimento desta capacidade de acolhimento e de escuta, seja preparando individualmente as pessoas, seja criando as estruturas que favoreçam esta postura na Igreja (por exemplo, quantas dioceses ou organizações têm pessoas especificamente designadas para receber denúncias, ou gabinetes de apoio a potenciais vítimas, ou disponibilizam serviços de apoio dotados dos devidos meios de aconselhamento profissional?).
2. Procurar genuinamente a verdade
Tomar partido a favor da vítima não significa, naturalmente, assumir-se indiscriminadamente contra o alegado agressor, nem fazer julgamentos apressados. A caridade não dispensa, antes exige, a verdade. Esta exigência supõe que nenhuma denúncia fique sem resposta, que todas as notícias de um potencial abuso sejam investigadas, tal como, aliás, requer o direito canónico e todos os protocolos que têm vindo a ser adotados.
Uma genuína busca da verdade, que parta de uma “parcialidade” a favor da vítima deve, em primeiro lugar, assumir a necessidade de uma primeira resposta aberta a medidas preventivas ou cautelares imediatas, que garantam a proteção de quem formulou a denúncia, mas também de outras potenciais vítimas. Não se trata de punir primeiro (afastando clamorosamente alguém do seu cargo) e averiguar depois, mas de acompanhar a escuta da vítima de uma ação concreta e visível, mesmo garantindo a presunção de inocência e acautelando o bom nome de quem é implicado. Apesar de muito “garantista”, o ordenamento canónico prevê tais medidas e dá indicações claras quanto à sua provisoriedade e reversibilidade no caso de as acusações, no final, não serem comprovadas. Fazer verdade na caridade é também ser transparente, tanto junto de quem denuncia, como diante de quem é acusado e de toda a comunidade envolvida. Reciprocamente, viver a caridade na verdade exige que denúncias improcedentes não deem lugar a sanções de facto.
A abertura da Igreja à verdade, como exigência da caridade, supõe também um trabalho de reconciliação com a história, manifestando disponibilidade para acolher sofrimento escondido (ou até ignorado), possivelmente durante longos períodos.
A abertura da Igreja à verdade, como exigência da caridade, supõe também um trabalho de reconciliação com a história, manifestando disponibilidade para acolher sofrimento escondido (ou até ignorado), possivelmente durante longos períodos. A psicologia é muito clara: o tempo não cura tudo e as vítimas de abusos sexuais na infância ou juventude podem transportar consigo traumas por afrontar e feridas por curar durante toda a vida. A crise que vive a Igreja no presente convida-nos, portanto, enquanto “sinal dos tempos”, a um sério exercício de contrição que ajude a criar as condições para que vítimas do passado possam fazer as pazes com a Igreja e consigo mesmas. Ainda que certamente discutível, o movimento recente, nalguns países, de publicar extensas listas de membros do clero acusados e/ou condenados por abusos sexuais de menores inscreve-se nesta linha. O objetivo não pode ser o de conquistar “atestados de transparência”, mas o de manifestar a disponibilidade para assumir a própria história, com todas as suas sombras.
3. Dar uma resposta integral
A reação a uma denúncia ou situação comprovada de abusos não pode cingir-se ao cumprimento de regras, protocolos e leis. Os abusos sexuais cometidos em instituições ou por representantes da Igreja exigem uma reação que tenha a vítima no centro, sem deixar de dar atenção à complexidade da situação. A caridade exige que a resposta dada contemple a vítima, em primeiro lugar, mas também a comunidade no seu todo e o próprio abusador.
Para além do acolhimento e dos mecanismos que conduzam ao esclarecimento dos factos e ao restabelecimento da justiça (punição do perpetrador, indemnização…), à vítima deve ser oferecido um acompanhamento consistente, tanto por parte dos responsáveis da Igreja quanto da comunidade, fugindo à tentação de “fechar o assunto”. Claro que os traumas vividos podem ser muito distintos e que a vítima deve ser respeitada no modo em que escolhe enfrentar, integrar e ultrapassar o drama vivido, mas tem de o poder fazer sabendo que a instituição e a comunidade eclesiais querem fazer esse caminho com ela!
Uma resposta ao drama dos abusos deve por isso envolver toda a comunidade, tanto ao nível local – onde se tenha verificado um caso concreto – quanto a nível global. É responsabilidade de todos criar comunidades que manifestem disponibilidade para acolher, escutar e amparar eventuais vítimas, e que ao mesmo tempo assumem o empenho de combater todo o tipo de abusos. No entanto, as normas, protocolos e formações que visem incrementar a prevenção e despertar para a necessária vigilância não devem conduzir-nos a um clima de suspeição e de contenção (como infelizmente, parece ser o caso nalguns contextos), mas contribuir para uma cultura da proteção e do cuidado, fundada sobre a colaboração e participação de todos em igual dignidade, fechando a porta a todas as formas de autoritarismo e clericalismo.
Uma resposta ao drama dos abusos deve por isso envolver toda a comunidade, tanto ao nível local – onde se tenha verificado um caso concreto – quanto a nível globa
Por fim, também o agressor tem de ser envolvido numa resposta da Igreja orientada pela caridade e que tenha a vítima no centro. Entre os extremos de uma aceitação acrítica da própria “versão” e de uma fácil e radical demonização, é necessário encontrar caminhos que olhem para os responsáveis por abusos na sua dignidade fundamental de pessoas e de cristãos. Peça central neste percurso será certamente o acompanhamento, próximo, mas também exigente, que crie condições para que, por um lado, sejam absolutamente evitadas situações de perigo, e, por outro, sejam oferecidos instrumentos de regeneração e reconciliação.
O drama dos abusos sexuais na Igreja não admite respostas simplistas, antes exige – da parte de todos – uma sincera abertura de coração para defender, acolher e curar os mais necessitados: as vítimas. Neste caminho, só a caridade nos guia: tanto com tão pouco!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.