A desmaterialização do ensino

Para evitar que a virtualidade do mundo digital se sobreponha à realidade da humanidade, torna-se ainda mais decisivo o trabalho sobre os valores e as virtudes que nos permitem cuidar da dignidade dos seres humanos.

Há quase dois anos, partilhei aqui as minhas reservas acerca do modo como estava a ser discutida a digitalização do ensino. Estávamos em plena pandemia, compreensivelmente deslumbrados com o que a tecnologia estava a permitir fazer pelo acompanhamento dos alunos em isolamento. Pareceu-me que o contexto era propício a que se avançasse irrefletidamente para a educação digital, pois as opiniões sobre este processo ignoravam muitas vezes que a circunstância pandémica era uma realidade diferente do dia a dia das escolas. Como professor, senti falta do contraditório, senti falta da reflexão sobre as consequências menos positivas da transição generalizada para um ensino digital. Se escrevesse hoje o texto, não alteraria nele nada de substantivo, exceto um certo tom de esperança que lhe é dado pela expectativa que na altura eu tinha acerca de uma reflexão mais alargada sobre os passos que estavam a ser dados no campo da educação, uma reflexão que incluísse tudo o que o processo efetivamente implica. Se houve essa reflexão, não dei por ela. Com as indicações por parte das editoras de que a curto prazo deixarão de produzir manuais escolares em papel e com a recente indicação de que as provas de aferição e os exames nacionais serão progressivamente desmaterializados, a discussão possível sobre este assunto vê-se ultrapassada pela realidade. Neste momento, creio que a reflexão sobre o “para quê” da digitalização do ensino é uma reflexão desatualizada, porque já foram dados passos largos e inflexíveis nessa direção. Como escrevi em 2021, a transição digital oferece ao ensino um leque de possibilidades extraordinário, mas exige uma ponderação cuidada dos objetivos que com ela se pretende alcançar. Avançar para a desmaterialização em todas as áreas disciplinares parece-me uma decisão tomada ao arrepio dessa ponderação.

Com as indicações por parte das editoras de que a curto prazo deixarão de produzir manuais escolares em papel e com a recente indicação de que as provas de aferição e os exames nacionais serão progressivamente desmaterializados, a discussão possível sobre este assunto vê-se ultrapassada pela realidade.

Ao abrigo da iniciativa da desmaterialização dos processos administrativos, o Estado tem promovido alterações na maneira como se processam as interações dos cidadãos com vários serviços, refletindo-se na maior eficácia, rapidez e conforto das mesmas. Porém, desmaterializar a entrega do IRS é uma coisa e desmaterializar o ensino é outra. Utilizar a entrega do IRS ou as receitas médicas digitais para defender a desmaterialização da escola não me parece encerrar um conhecimento efetivo sobre o que é o ensino. Naturalmente que se poderá aproveitar o que se aprendeu nestas áreas sobre dificuldades técnicas, falta de acesso a dispositivos, necessidade de formação e outros problemas, mas, ainda assim, no ensino é diferente. Posto isto, e diante da factualidade incontestada da desmaterialização do ensino, acrescento quatro pontos à reflexão de 2021, avançando do «para quê?» para o «como?».

Competências digitais

Digitalizar o ensino não deve ser visto como uma necessidade decorrente do facto de estarem a chegar à escolarização formal os chamados “nativos digitais”. Os nativos continuam a ser humanos, o contexto é que os faz digitais. Uma criança educada longe dos ecrãs tácteis deixa de ser um nativo digital. E não perde rigorosamente nada com isso, porque, como escreve Michel Desmurget, em A Fábrica de Cretinos Digitais, «uma conversão tardia para o digital não impedirá a criança, num ápice, de se tornar tão ágil como o mais experiente dos digital natives». Na cultura plug and play, as ferramentas digitais são desenhadas com o objetivo de oferecerem ao utilizador uma experiência sem dificuldades. Ou seja, «qualquer palerma é capaz, em poucos minutos, de dominar essas ferramentas», como escreve Desmurget. Portanto, a não ser que se considere a condição de “nativo digital” como uma fatalidade que se traduz na incapacidade de as crianças lidarem com a realidade sem ser através da mediação da tecnologia, de tal modo que à escola apenas reste desmaterializar-se, não é por terem nascido num mundo digital que se deve dar às crianças uma escola igualmente digital. No mesmo sentido, é enganoso julgar que a desmaterialização da escola serve o propósito de preparar os alunos para o seu futuro digital, pois eles não precisam desse ensino. Aliás, basta ver as gerações de hoje em dia com, por exemplo, 40 ou 50 anos, que beneficiaram de um ensino material e que, não obstante essa “lacuna”, dominam essas ferramentas. Aquilo de que as crianças continuam a precisar no mundo digital assenta numa tecnologia que já existe de forma generalizada desde os anos 80: processadores de texto, folhas de cálculo e programas de suporte a apresentações. Para os professores que atravessaram a pandemia, este déficit digital dos nativos digitais tornou-se evidente. Desmurget considera que «o problema é tão vincado que um relatório recente da Comissão Europeia colocava a “parca competência digital do aluno” no topo da lista dos fatores suscetíveis de travar a digitalização do sistema educativo». Se a desmaterialização do ensino for pensada como meio para desenvolver as competências inerentes a um eficaz processamento de texto em meio digital, como meio para desenvolver de forma progressiva o raciocínio lógico e matemático em que se fundamenta as incontáveis possíveis aplicações das folhas de cálculo e como meio para produzir suportes de apresentações cuidadas que melhorem a comunicação, estamos no bom caminho. Ignorar isto pode, pelo contrário, levar à situação caricata de um aluno desenvolver a capacidade de programar aplicações para smartphones, sendo incapaz de escrever um email com correção e clareza.

Se a desmaterialização do ensino for pensada como meio para desenvolver as competências inerentes a um eficaz processamento de texto em meio digital, como meio para desenvolver de forma progressiva o raciocínio lógico e matemático em que se fundamenta as incontáveis possíveis aplicações das folhas de cálculo e como meio para produzir suportes de apresentações cuidadas que melhorem a comunicação, estamos no bom caminho.

Motivação

Se a digitalização estiver também a ser pensada como resposta à falta de motivação dos alunos, é importante não esquecer que, se é verdade que alguns alunos ficam efetivamente mais motivados com um iPad nas mãos do que com a versão em papel do Amor de Perdição ou com um lápis e uma borracha para calcular derivadas, não é menos verdade que os alunos não ficam mais motivados com a leitura do Amor de Perdição se o lerem num suporte digital nem ficam mais motivados para calcular derivadas se o fizerem com recurso a um ecrã tátil. Os meios digitais motivam os alunos sobretudo para usarem os meios digitais e não para a leitura ou para o raciocínio matemático. Nas paredes das salas de aulas desmaterializadas, devia estar escrita esta ideia de forma visível: os meios digitais são um meio, não um fim. Por outras palavras, desmaterializar o ensino não desobriga a escola de criar condições para que o aluno seja capaz de se motivar, de desenvolver o desejo de conhecer pelo desejo de conhecer. Descobrir a paixão como uma dimensão constitutiva da condição humana a partir de Simão e Teresa ou sentir o prazer de solucionar problemas complexos que envolvam o cálculo de derivadas são indiferentes ao meio em que se processam. Perspetivada como mecanismo de motivação, a desmaterialização do ensino pode ser um presente envenenado.

Saúde

A desmaterialização do ensino terá de ser acompanhada por profissionais de saúde, que ajudem a determinar tempos máximos de exposição a écrans. Há várias evidências que mostram os malefícios da exposição prolongada aos écrans, motivo pelo qual, aliás, o Tribunal de Justiça da União Europeia deu há poucos dias razão a um trabalhador romeno que exigiu ao seu empregador o pagamento de uns óculos graduados, alegando que o trabalho contínuo diante de um monitor de um computador provocou a deterioração da sua visão. Portanto, ou se definem tempos de écran ou o Estado terá de incluir um par de óculos no kit que entregar aos alunos das escolas públicas com o portátil e os manuais digitais. E outro para os seus professores, claro. Infelizmente, a continuarem as regras atuais, para os alunos das escolas privadas será mais uma despesa a acrescentar às dos manuais. Do mesmo modo que se criam aplicações de smartphone para desenvolver a concentração que o próprio smartphone prejudica, o ensino terá de criar tempos de “materialidade” que promovam a saúde que a própria desmaterialização do ensino prejudica. Criar estes momentos não será tarefa difícil se se conjugar a digitalização com a manutenção de suportes materiais para alguns conteúdos, disciplinas ou atividades, como é o caso do desenvolvimento de raciocínios matemáticos, da escrita, da leitura ou do desenho. Com estas ou outras atividades, o que não deve acontecer é deixar este aspeto por regular, correndo o risco de os alunos, além do uso que fazem do smartphone nos intervalos e em casa ao final do dia, passarem todos os tempos letivos a olhar para écrans.

Soft skills

Finalmente, a desmaterialização do ensino terá de ser acompanhada de um forte investimento no desenvolvimento de soft skills, hipoteticamente através da constituição destas como uma área disciplinar. Com a presumível diminuição das interações pessoais, dado que as ferramentas digitais substituem em parte a relação com o professor e com os pares, desenvolver habilidades sociais como o trabalho cooperativo e colaborativo, a comunicação, a liderança, a escuta ativa e a empatia irá tornar-se cada vez mais premente.

Será determinante criar atividades que desenvolvam o pensamento criativo e inventivo, para evitar que as ferramentas de inteligência artificial, que começam a levantar sérios problemas nos meios académicos, tomem de assalto a criatividade dos alunos.

Atendendo a este ambiente digital das escolas, o relatório The Future of Education and Skills Education 2030, da OCDE, aponta uma longa lista de capacidades e competências que, a par das hard skills, devem ser objeto de trabalho específico por parte das escolas. Assim, será fundamental dedicar tempo, por exemplo, ao treino da flexibilidade e da adaptabilidade, necessárias para os casos em que, por variadíssimas razões, os equipamentos digitais ficarem indisponíveis. Será determinante criar atividades que desenvolvam o pensamento criativo e inventivo, para evitar que as ferramentas de inteligência artificial, que começam a levantar sérios problemas nos meios académicos, tomem de assalto a criatividade dos alunos. E, para evitar que a virtualidade do mundo digital se sobreponha à realidade da humanidade, torna-se ainda mais decisivo o trabalho sobre os valores e as virtudes que nos permitem cuidar da dignidade dos seres humanos, a não ser que o futuro passe por sermos como o japonês Akihiko Kondo, que está casado há quatro anos com um holograma.

Tudo isto exige, como é evidente, a formação dos professores e a introdução de alterações à sua carreira. É desejável que esta mudança de paradigma das escolas se reflita também no modo como são definidas as suas atribuições, caso contrário será mais uma alteração feita em cima de uma carreira a precisar de reforma há muito, uma carreira que tem permanecido indiferente, por exemplo, às exigências que a escola inclusiva trouxe – e pelos motivos mais nobres – à vida dos professores. Isto se a intenção do Estado não passar pela desmaterialização dos professores, substituindo-os por hologramas que não fazem greves.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.