Para quê?

É de esperar que a reflexão clarifique o «para quê» da desmaterialização dos manuais, que necessariamente se traduzirá na alteração dos projetos educativos, adequando-os ao novo perfil do aluno que se quer educar.

As adaptações a que as escolas se viram forçadas com a pandemia acentuaram, por razões evidentes, a presença do tema da tecnologia na agenda dos stakeholders do sector da educação. São várias as vozes a vaticinar que o ensino à distância trouxe consigo ferramentas que irão permanecer no ensino presencial, abrindo-se assim decisivamente o caminho à digitalização do ensino, que tem na desmaterialização dos manuais escolares uma das medidas mais conhecidas.

É indiscutível que aquilo que as escolas viveram desde março de 2020 veio enriquecer o leque das possibilidades didáticas. Aliás, em determinados contextos, o ensino à distância foi o gatilho necessário para introduzir reformas que eram necessárias há muito. Mas, como disse recentemente a presidente do Conselho Nacional da Educação, se é verdade que estes «novos instrumentos digitais são muito úteis» e que são «ferramentas que podem ser utilizadas na escola em ensino presencial», não é menos verdade que «temos que pensar um bocadinho para quê». Apesar de o Governo ter avançado com projetos-piloto de manuais digitais em algumas escolas, a sugestão da presidente do CNE ainda vem a tempo, sobretudo se as escolas, em função do seu projeto educativo e da realidade dos seus alunos, puderem decidir se adotam ou não manuais digitais. Se se quer promover a autonomia das escolas e a liberdade de educação, é o que deverá acontecer.

Não cabe no âmbito deste texto uma análise detalhada das vantagens e desvantagens da digitalização do ensino. Mas essa é a primeira tarefa que as escolas devem levar a cabo, envolvendo educadores, alunos e encarregados de educação. É de esperar que a reflexão clarifique o «para quê» da desmaterialização dos manuais, que necessariamente se traduzirá na alteração dos projetos educativos, adequando-os ao novo perfil do aluno que se quer educar. E é neste ponto que a discussão sobre o tema precisa de amadurecer, porque me parece que tem sido pouco claro, em particular para as famílias, que a digitalização do ensino não é apenas mais uma atualização didática. Não é um «para quê» imediato que está em falta, pois a esse pode responder-se com o argumento da diminuição do peso das mochilas. É um «para quê» a longo prazo que está em falta. Estará claro para as famílias o tipo de aluno que sairá de uma escola digital?

Não é um «para quê» imediato que está em falta, pois a esse pode responder-se com o argumento da diminuição do peso das mochilas. É um «para quê» a longo prazo que está em falta. Estará claro para as famílias o tipo de aluno que sairá de uma escola digital?

Em Os Superficiais – O que a internet está a fazer aos nossos cérebros, Nicholas Carr explica o modo como a internet e as ferramentas digitais estão a transformar a nossa mente, sobretudo quando se tornam os meios de leitura predominantes no nosso dia a dia. Quando lemos hipertexto num equipamento informático, como acontece com os manuais digitais, a necessidade de avaliar hiperligações para fazer escolhas relativas à navegação obriga a uma «coordenação mental e a uma tomada de decisões constantes», mesmo que consigamos desativar outros recursos multimédia que nos distraem ou que nos põem em modo multitarefa. É verdade que isso incrementa a atividade cognitiva dos leitores, o que foi considerado uma vantagem por alguns autores, mas, sendo uma solicitação contínua, acaba por sobrecarregar as nossas capacidades cognitivas, «debilitando a nossa habilidade de compreender e de reter o que estamos a ler». Se adicionarmos conteúdos multimédia à equação (e será assim, porque a ideia que nos vendem é a de que os manuais digitais são mais ativos e, portanto, mais apelativos e eficazes), os estímulos do modo multitarefa aumentarão a sobrecarga cognitiva e poderão limitar mais do que aumentar a aquisição do conhecimento. Um utilizador intensivo do modo multitarefa torna-se «pasto da irrelevância», como refere Clifford Nass, porque qualquer coisa nos distrai. Alheando o cérebro da interpretação dos textos, o ambiente digital acaba por promover «a leitura negligente, o pensamento apressado e a aprendizagem superficial». É verdade que, com a internet e a leitura de textos em suporte informático, desenvolvemos a capacidade de explorar extensivamente temas do nosso interesse, mas sacrificamos a leitura em profundidade. Como refere Carr, estamos a evoluir de agricultores que cultivam o «conhecimento pessoal para caçadores e coletores numa floresta de dados eletrónicos». Um pessimista diria que acedemos a muita informação, mas que adquirimos pouco conhecimento. É verdade que estamos a desenvolver a inteligência visual-espacial, mas a enfraquecer o «processamento profundo que está subjacente à aquisição consciente de conhecimento, à análise indutiva, ao pensamento crítico, à imaginação e à reflexão». Numa palavra, estamos a ficar superficiais. E essa superficialidade tem efeito na memória («as pessoas que leem texto linear compreendem melhor, recordam melhor e aprendem melhor do que aqueles que leem textos temperados com hiperligações»), tem efeito na habilidade da escrita cursiva («com as crianças a utilizar teclados desde tenra idade […], há evidências crescentes de que a capacidade de escrever em escrita cursiva está a desaparecer») e tem efeito na capacidade contemplativa («a nossa capacidade para nos envolvermos em pensamento meditativo, que para Heidegger significava a verdadeira essência da nossa humanidade, pode vir a ser uma vítima do progresso precipitado. O desenvolvimento tumultuoso da tecnologia poderá […] abafar as perceções refinadas, os pensamentos e as emoções que surgem apenas através da contemplação e da reflexão»). Nicholas Carr sugere, com base numa investigação de António Damásio, que os efeitos da superficialidade não se restringem ao campo intelectual, afetando também o campo das emoções, que «emergem de processos neuronais que são inerentemente lentos».  Ou seja, pode acontecer que, quanto mais superficiais nos tornamos, «menos capazes ficamos de sentir as mais subtis, as mais caracteristicamente humanas formas de empatia e de compaixão».

A reflexão de Nicholas Carr é de 2010. Muita coisa mudou em 11 anos e poderia a investigação subsequente não ter confirmado a sua perspetiva. Todavia, mais recentemente, G. Lukianoff e J. Haidt dão-lhe razão. Em The Coddling Of The American Mind (publicado em 2018), os autores apresentam possíveis causas para o ambiente de proteção excessiva (ou «ultrassegurança») que se vive nas universidades norte-americanas. Uma das explicações apresentadas assenta no declínio da saúde mental dos jovens, verificado no aumento dos problemas de ansiedade e depressão nessa faixa etária. No capítulo dedicado a este tópico, os autores fazem referência a um estudo a partir do qual é possível identificar atividades dos jovens «que mantêm uma correlação significativa com a depressão […]: usar dispositivos eletrónicos (como um smartphone, um tablet ou um computador) e ver televisão». Em sentido contrário, são identificadas «cinco atividades que têm uma relação inversa com a depressão […]: o desporto e outras formas de exercício, assistir a cerimónias religiosas, ler livros e outros meios impressos, interações sociais em pessoa e fazer os deveres». Os autores sublinham que não é possível afirmar taxativamente que há um nexo de causalidade entre usar equipamentos digitais e sofrer de ansiedade e depressão, mas a correlação entre os fenómenos existe e é significativa. Por isso, ainda que sejam cautelosos na análise da relação entre o tempo de ecrã e a saúde mental dos mais jovens, são bastante assertivos quando sugerem às famílias que se deve limitar o tempo de ecrã dos filhos a duas horas diárias e quando sugerem às escolas que adotem uma política que coloque os smartphones dos alunos longe do seu alcance durante o dia.

Naturalmente, haverá estudos que apresentem perspetivas diferentes, mas não tenho dúvidas de que estes dados são também muito importantes para a reflexão sobre a digitalização do ensino, incluindo as referências que são feitas pelos autores ao uso de dispositivos informáticos, porque, como é evidente, desmaterializar manuais escolares significa materializar esses equipamentos nas mãos dos alunos.

Naturalmente, haverá estudos que apresentem perspetivas diferentes, mas não tenho dúvidas de que estes dados são também muito importantes para a reflexão sobre a digitalização do ensino, incluindo as referências que são feitas pelos autores ao uso de dispositivos informáticos, porque, como é evidente, desmaterializar manuais escolares significa materializar esses equipamentos nas mãos dos alunos.

Apesar do que fica dito, os autores não propõem que se corte radicalmente a relação com a tecnologia, até porque estas questões surgem apenas quando os meios digitais se tornam uma presença dominante na nossa vida. Banir a tecnologia não só seria uma medida impraticável como seria muito pouco sensata, já que a lista das vantagens das ferramentas digitais não tem fim, incluindo para a educação. E, na verdade, essas questões que os autores levantam podem nem sequer ser um problema. Imagino, por exemplo, que os manuais digitais não sejam um dilema para as famílias que matriculam os filhos na Archbishop Stepinac High School, em Nova Iorque, conhecida por ser uma all-digital school. Em sentido inverso, não será boa ideia propor a desmaterialização dos manuais às famílias que matriculam os filhos na Waldorf School of the Peninsula, conhecida por ser uma tech-free school, ironicamente situada em Sillicon Valley. A propósito desta última escola, não deixa de ser curioso que muitos filhos de trabalhadores das grandes empresas tecnológicas de Sillicon Valley frequentem o colégio Waldorf, que propõe um ensino sem equipamento tecnológico. Partindo dos exemplos destas escolas, fica claro que o que está em jogo numa decisão sobre a desmaterialização dos manuais é menos a identificação definitiva do “bom” e do “mau” e mais a clarificação do «para quê». Existirão sempre famílias interessadas em escolas digitais e em escolas livres de tecnologia, mas, para haver uma decisão informada sobre um aspeto tão importante como a educação dos filhos, a reflexão não se pode cingir à diminuição do peso das mochilas, que é um problema que deve merecer toda a nossa atenção, mas que pode ser mitigado de outras formas.

No âmbito do projeto educativo que me serve de referência, o da Companhia de Jesus, a adoção de manuais digitais levanta-me dúvidas, sobretudo se a adoção for generalizada. Para uma pedagogia que tem na Reflexão um dos seus pilares, tem de ser bem ponderada a perda da capacidade de ler profundamente. Obter mais informação, mas de modo menos profundo é em parte contrário ao princípio «non multa, sed multum» da Ratio Studiorum. Para uma pedagogia baseada numa espiritualidade que promove a oração, é fundamental treinar a concentração e a capacidade contemplativa. A lista de dúvidas continua, mas não significa que exista uma incompatibilidade. Mais do que o exagero de rejeitar os manuais digitais porque nos podem tornar menos compassivos ou do deslumbramento fácil de os adotar porque criam estímulos e interações que mantêm os alunos motivados, é importante ponderar cuidadosamente o «para quê» de tudo isto, talvez para concluir que devemos rejeitar um manual digital nas atividades de educação para a interioridade, mas que devemos adotar a pesquisa online de dados estatísticos como método para um trabalho sobre emigração. O que não se pode esperar é que as armas das personagens do Fortnite disparem sonetos de Camões por ser essa a única forma de cativar os alunos e de ir ao encontro da sua expectativa. A capacidade do aborrecimento é um recurso educativo riquíssimo. No meio-termo entre o exagero dos extremos, é onde podemos encontrar o valor de projetos educativos equilibrados, que formem alunos digitais e cursivos, contemplativos e visuais-espaciais, com capacidade de aprofundar reflexões e de trabalhar em multitarefa. Tenho dúvidas de que a desmaterialização dos manuais contribua para esse equilíbrio.

Não sei se este último parágrafo será publicado, porque – lá está! –, sendo um texto para ser lido no browser, não se pode contar com muito tempo de leitura. Já não falta muito para terminar, mas há ainda um aspeto importante a ter em conta na reflexão sobre a digitalização do ensino. Quiçá deva estar em cima da mesa logo desde o início: examinar de onde vem este discurso que chega à escola sobre a necessidade de os alunos passarem mais tempo diante de um ecrã. Entre outras, foi para essa pergunta que o Education Week Research Center tentou obter resposta com um questionário feito em 2018 às lideranças de mais de 500 escolas norte-americanas. Um dos itens em avaliação pretendia aferir a pressão que os stakeholders exercem no sentido de aumentar ou diminuir o tempo que as crianças passam diante do ecrã. Numa análise rápida dos resultados, percebe-se que são os pais e os professores que mais pressão fazem para que se diminua o tempo que os alunos passam diante de um ecrã na escola e, em sentido inverso, são os próprios alunos e os vendedores das companhias tecnológicas que mais pressão fazem para que esse tempo aumente. Estes resultados só poderão surpreender quem andar desatento. Basta ver que empresas patrocinam os eventos dirigidos a professores e subordinados ao tema a-digitalização-do-ensino-é-inovação-pedagógica. A estratégia de mercado que as empresas definem para a educação não é um problema das escolas. Aliás, é nesses eventos que nós ficamos a conhecer as soluções que as empresas têm para o ensino. Mas ganha-se muito em ter presente na reflexão que interesses subjazem a um determinado discurso. O meu interesse ficou declarado no início do oitavo parágrafo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.