A democracia em perigo?

Vêm aí mais umas eleições legislativas, oportunidade para tomar o pulso do nosso sistema democrático. Se as vivermos como apenas mais uma formalidade, talvez a nossa democracia esteja em perigo, pois nunca está definitivamente garantida.

No dia 6 de outubro, repete-se, uma vez mais, o “ritual” do ato eleitoral: os portugueses são chamados a votar para escolher os 230 deputados que formarão o Parlamento para os próximos 4 anos. Trata-se de um gesto simples, uma cruz numa folha de papel (até ver), com um significado simultaneamente ínfimo – um em 6 milhões – e verdadeiramente transcendente – não é apenas expressão de uma opinião, mas uma decisão soberana. Este gesto está no centro da democracia, enquanto regime político no qual a última palavra acerca de quem exerce o poder (legislativo, executivo e, em medida diversa, judicial) pertence aos cidadãos. As formalidades que envolvem o ato eleitoral, exigência de voto presencial, regras acerca da campanha e dia de reflexão, mesas eleitorais, segredo de voto, etc., são garantia da liberdade no exercício deste direito (e dever). No entanto, estas garantias formais de pouco servem se não existir uma “democracia material” que é da responsabilidade de todos construir e defender, pois nunca está definitivamente garantida.

1. Participação

O perigo maior que ameaça muitas democracias maduras – como a nossa – é a abstenção, ou seja, a recusa de uma grande parte dos eleitores em expressar a própria voz, pelas mais variadas razões. A baixa participação numa eleição causa, por um lado, a erosão do princípio de representação e conduz, por outro, a um falseamento do resultado, privilegiando muitas vezes aqueles partidos que “gritam mais alto”. Infelizmente, parece que, tal como muitos outros problemas do nosso viver em comum, a abstenção só constitui uma verdadeira preocupação nos dias que seguem a votação, motivando análises e comentários que não conduzem a nenhuma ação nos quatro anos seguintes…

Não acredito que a solução seja tornar o voto obrigatório (com algum tipo de prémio ou de castigo que, além de infantilizar os eleitores, agravaria ainda mais o risco de controlo do Estado sobre os seus cidadãos). É necessário percebermos, enquanto sociedade, o que provoca o desinteresse ou desencanto com o exercício dos próprios direitos políticos. Neste sentido, uma preocupação que me tem acompanhado nas últimas semanas é um certo clima de fatalismo que as sondagens para as próximas legislativas parecem criar, ao induzir a ideia de que “já está tudo decidido”. É decididamente necessário recuperar (ou criar) um espírito de responsabilidade diante do ato eleitoral, de tomada de consciência da grandeza do que está em jogo.

2. Informação

O desafio de uma maior participação no ato eleitoral não é apenas questão de números (mais porcento, menos porcento), mas passa também pela qualidade da informação e grau de consciencialização dos eleitores. Se votar é uma responsabilidade, ela pede-nos que cheguemos ao momento de colocar a cruz à frente de um nome com a consciência do que estamos a fazer. O esforço de informação, relativamente a pessoas, propostas, programas e ideias para o País, envolve tanto os eleitores quanto os candidatos e partidos. Para manter viva a democracia, é necessário que os eleitores procurem saber quem são os candidatos e o que defendem (em concreto!), resistindo à tentação de votar por tradição (“o meu partido de sempre”) ou por um protesto superficial (voto “antissistema”).

Por outro lado, os agentes políticos (candidatos, partidos, instituições, comunicação social) têm também uma especial responsabilidade em informar os cidadãos, desde logo com programas eleitorais claros e realistas. A cada campanha eleitoral parece recomeçar uma espécie de leilão de “promessas” a ver quem oferece mais: todos os partidos parecem concordar em que é necessário baixar impostos, aumentar o investimento público, melhorar a Educação e a Saúde, tornar o Estado mais eficiente, etc. – por sinal, tudo coisas que custam dinheiro – e já ninguém “leva a mal” que essas promessas sejam esquecidas no dia seguinte à eleição (possivelmente porque já ninguém as “leva a sério”). É responsabilidade dos partidos e dos candidatos propor e debater com transparência, crescendo na consciência de que “enganar” eleitores para vencer uma eleição é, a prazo, destruir a democracia.

Os eleitos também têm o dever de informar e promover a participação dos cidadãos, bem como o de se submeter ao escrutínio público por parte das oposições, instituições de controlo, imprensa e sociedade civil em geral.

3. Pensamento crítico

Um terceiro aspeto a ter em conta para avaliar e promover a qualidade da nossa democracia diz respeito a tudo quanto se realiza entre cada ato eleitoral, porque o voto não pode ser a única expressão da participação dos cidadãos. Neste âmbito entram todas as formas de participação cívica que “animam” a vida política de uma sociedade democrática, como petições públicas, manifestações, greves e outras formas populares de intervenção na atividade governativa. Da sua parte, os eleitos também têm o dever de informar e promover a participação dos cidadãos, bem como o de se submeter ao escrutínio público por parte das oposições, instituições de controlo, imprensa e sociedade civil em geral.

Gostaria, no entanto, de insistir num aspeto mais profundo, que é o da promoção de um debate sério e profundo sobre o próprio sistema. O nosso sistema político e eleitoral – como todos os outros – levanta muitas questões que devem ser abertamente discutidas, de preferência fora do período eleitoral. Uma primeira pergunta que podemos pôr, pensando nas legislativas, é: o que está verdadeiramente em jogo? Formalmente, elegemos deputados, de acordo com listas elaboradas por distritos. No entanto, todos sabemos que destas eleições sairá um novo Governo, e muito da campanha eleitoral gira em torno dos “candidatos a Primeiro-Ministro”. Deve mesmo ser assim? Deveríamos dar mais relevância aos próprios parlamentares, tornando-os verdadeiros representantes dos que os elegeram? Isto exigiria, desde logo, um maior escrutínio do modo como são elaboradas as listas, mas também uma maior liberdade de voto e um maior escrutínio da atividade de cada deputado. Todas estas questões não possuem respostas fáceis e deveriam alimentar a reflexão e as conversas, não só dos entendidos, mas de todos nós.

As eleições são sempre a “festa da democracia” e todos são convidados, mas não bastam, em si mesmas, para construir ou manter um sistema político verdadeiramente democrático. A qualidade da democracia mede-se, em período eleitoral e fora dele, pela participação informada dos eleitores, pela seriedade e transparência dos candidatos e pela contínua preocupação em melhorar o sistema, tornando-o sempre mais adequado às exigências do presente. Quando nos esquecemos de fazer a nossa parte, então sim, a democracia está em perigo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.