A cozinha como “prodígio da imaginação”: Maria de Lourdes Modesto (1930-2022)

A cozinha passa a ser, antes de mais, um modo de cuidado, que precede a técnica. Só somos capazes de “fazer um sarrabulho” ou “esperar que uma feijoada apure”, se entendermos a cultura agrícola que lhe está subjacente.

“Entendo também este livro como uma forma de combate (…) contra a insidiosa invasão de uma certa ‘cozinha internacional’, impessoal, soturna e monótona, que se alastrou por muitos restaurantes e ameaça também entrar-nos pela casa dentro”

(Maria de Lourdes Modesto, Cozinha Tradicional Portuguesa)

Um armário velho colocado dentro de uma parede de pedra aberta. Uma balança, dois tachos de cobre ao centro, um pote do lado direito. No topo de uma prateleira mais alta, loiça e, de novo, instrumentos de metal. “Cozinha Tradicional / Portuguesa / Maria de Lourdes Modesto” a letras brancas logo no início da segunda metade da página.

É devolvidos a esta disposição ancestral que somos deixados diante de uma das capas mais conhecidas do nosso universo editorial, que mais do que um repositório, ou a proposta de um cânone definitivo – “não é só do passado que se trata neste livro”, adverte a autora no seu prefácio – condensa uma tentativa de pensar a realidade, no mesmo nível de intensidade com que Eduardo Lourenço procurou desafiar os nossos traumas coletivos em O labirinto da saudade ou José Matoso tentou redefinir os horizonte da Identificação de um País.

Na verdade, se quando o filósofo grego Hipócrates introduziu com os seus trabalhos, em particular através do livro Da Medicina Antiga, os conceitos de diagnóstico e de dieta, não estava somente a potenciar o início da medicina, mas a estabelecer as bases da nossa relação sensível e epistemológica com o mundo que somos, Maria de Lourdes Modesto, como o seu receituário, colocou os portugueses perante si próprios, resintonizando-os com as suas opções coletivas fundamentais. Como apontou anos mais tarde, num outro livro, foi aos 27 anos que, deslumbrada com a cozinha francesa, compreendeu que uma “açorda à alentejana era um prodígio da imaginação”, e não algo arbitrário ou ocasional. Tratava-se de um legado que têm, por detrás, “uma espécie de gratidão constante relativamente aos alimentos”.

Hoje é muito arriscado tentar assinalar golpes de originalidade cultural, mas um dos dados mais curiosos é Maria Lourdes Modesto, com base na cozinha tradicional portuguesa, ter mostrado que o mundo não é somente um suporte; algo exaustivamente visível no modo como o pão deixa de ser um acessório e um suplemento, e se torna, no nosso contexto, o alimento central. A ideia de que a cozinha tradicional portuguesa é uma cozinha sem suporte, sem corrimão, marca uma existência onde o equilíbrio e o último recurso não era possível. Tudo se jogo “aqui”. Não há possibilidade de pensar no dispensável e na sustentação.

De todas as receitas foram chegando diferentes alternativas e nuances. Maria de Lourdes tornou-se, assim, numa escutadora, depois de perceber que tinha necessidade não de contra-atacar mas de era ouvir mais.

Além do mais, Maria de Lourdes Modesto parece revelar que a cozinha não é uma confeção ou um modo de preparar e proceder. A cozinha passa a ser, antes de mais, um modo de cuidado, que precede a técnica. Só somos capazes de “fazer um sarrabulho” ou “esperar que uma feijoada apure”, se entendermos a cultura agrícola que lhe está subjacente. A ideia, hoje estranha a sociedades cada vez mais urbanas, que o respeito pela natureza não está na sua plastificação, mas na integralidade real, efetiva e corporal que lhe é dada, por quem na hora da matança coloca a sobrevivência e o sustento diário da família em jogo, numa teatralização ritual é axial. Aí reside a verdadeira “ameaça” da dita cozinha “impessoal, soturna e monótona” de que fala M. L. Modesto: a não aceitação da vida real. Não por acaso na Eucaristia a consumação está umbilicalmente ligada ao consumo do Corpo e do Sangue de Cristo.

A esse respeito assinalou Gary Snyder em A Prática da Natureza Selvagem que “para sermos verdadeiramente livres, temos de aceitar as condições fundamentais tal como são – dolorosas, impermanentes, abertas, imperfeitas – e de nos mostrarmos depois gratos pela impermanência e liberdade que elas nos concedem. (…) O mundo é Natureza e, a longo prazo, inevitavelmente selvagem, porque o selvagem, enquanto processo e essência da Natureza, é também uma imposição de impermanência.“. Ou seja, retomando um conceito de Albert Schweitzer, em A filosofia da civilização, a cozinha reveste-se de uma ética de reverência pela vida.

Mas, no caso concreto do livro Cozinha Tradicional Portuguesa é interessante olhar para o seu processo de origem. Maria de Lourdes Modesto estava já há algum tempo “no ar”. Apresentou, um dia, uma receita de ensopado de borrego. Começaram a chover cartas. “Não se faz assim”. “Deita-se mais isto”. “Não se deixa tanto tempo ao lume”. A então estrela da televisão portuguesa decide algo audacioso: fazer um concurso, através da RTP, no começo dos anos 60, para recolher várias versões das receitas cruciais de Portugal. Cabidela, Açorda, Doce de ovos. De todas as receitas foram chegando diferentes alternativas e nuances. Maria de Lourdes tornou-se, assim, numa escutadora, depois de perceber que tinha necessidade não de contra-atacar mas de ouvir mais. O livro fundacional que redigiu não é uma composição solitária ou de laboratório, mas uma composição participada. Um desafio curioso em tempo provocados pela sinodalidade.

PS: Quando a minha avó paterna morreu, Maria de Lourdes Modesto a o seu livro Cozinha Tradicional Portuguesa tornaram-se a possibilidade mais concreta de refazer algumas peças do puzzle gastronómico que ela me tinha deixado incompleto. E mesmo sabendo que nunca o terei totalmente terminado, este grau de referencialidade é extremamente significativo.

Fotografia de Carlos aranda – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.