Quando tenho um daqueles momentos de pensamentos soltos, acabo por concluir que, se procurasse figuras antagónicas que pudessem, de alguma forma, retratar o que nos é dado hoje viver nas nossas relações sociais, entre grupos e/ou entre nações, estaria entre a Bela e o Monstro, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, e Jekyll e Hyde, de Robert Louis Stevenson.
Existe uma divisão clara na forma como se encaram as relações com outros, grupos ou nações. Por uma parte, a que se fundamenta no Bem Comum. Por outro lado, a que se baseia neste novo conceito de se ser “Great Again”. Uma inclui, integra, respeita, dignifica, cuida e partilha, partindo da visão universal de um destino comum inseparável. A outra, pelo que temos vindo a assistir, exclui, desintegra, humilha, negligencia e degrada, partindo da visão isolada de cada um por si e só por si.
Nestes momentos de pensamentos soltos, apercebo-me de que, bem facilmente, se pode passar duma visão à outra sem nos darmos conta ou acreditando ter tudo controlado. Sob capa de bem, facilmente abdicamos do princípio do Bem por agradar e, enganando e agradando, conquistar o poder sem assumir qualquer tipo de responsabilidade ética ou moral. Mas a História tem provado, uma e outra vez, que tudo aquilo que não é verdadeiro, leva à perversão da violência, que mata o outro e, mais tarde ou mais cedo, o próprio.
Creio que deveremos estar muito atentos a esta nova Comissão Europeia e à divisão de pastas apresentada pela nova presidente da Comissão, Ursula Von der Leyen. Deixa pelo menos interrogação, para não dizer preocupação, ver que na Comissão deixou de existir a pasta dedicada à migração. Parece que a responsabilidade de asilo e migração ficará agora sob o mandato do “Vice-Presidente para a proteção do nosso estilo de vida europeu”. Só o nome preocupa.
O que é isso do nosso estilo de vida europeu? A resposta que os jornalistas receberam da nova Presidente foi preservar “os valores e a beleza da dignidade de cada ser humano”. Quererá isto, então, dizer que a mudança de nome e a reformulação nas competências terá sido pensada com o intento de afastar fantasmas, temores e calar as vozes populistas dos líderes de algumas nações e de alguns dos deputados com assento no Parlamento Europeu? Como se fazendo desaparecer a palavra migração deixassem de acontecer os movimentos de pessoas em busca de segurança e de futuro e a necessidade de as acolher e integrar com decência…
Sobre isto, vale a pena ler o artigo publicado no The Conversation, no passado dia 12, de Alberto Ares, SJ – Director del Instituto Universitario de Estudios sobre Migraciones na Universidade Pontifica de Comillas.
Parece que a responsabilidade de asilo e migração ficará agora sob o mandato do “Vice-Presidente para a proteção do nosso estilo de vida europeu”. Só o nome preocupa.
Também recentemente, no passado dia 10, tivemos a grata surpresa de saber que o Ruanda assinou um acordo tripartido, com a União Africana (UA) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), com o fim de acolher temporariamente refugiados e solicitantes de asilo africanos bloqueados na Líbia. Uma notícia boa.
Nas próximas semanas, receberão um grupo inicial de 500 pessoas maioritariamente do Sudeste Africano. O governo ruandês diz que está disposto a acolher nos seus centros de trânsito até 30.000 africanos bloqueados na Líbia, mas só em grupos de 500 para evitar que o país se veja desbordado.
Não sei se, no caso do Ruanda, não penderia mais para Jekyll e Hyde. Um país de uma beleza realmente inigualável! Cada metro, cada centímetro, obriga-nos a abrir os olhos com espanto por tanto encanto. É o país das mil colinas! É impossível que quem visita o Ruanda não fique totalmente rendido. Boas estradas, sinais reais de modernização levada à séria (já em 2010 não era possível entrar no Ruanda com sacos de plástico, a percentagem de deputadas no Parlamento era igual à dos deputados, verificava-se uma melhoria inquestionável na organização das grandes cidades, na distribuição da internet pelo país, etc.).
No entanto, no relatório anual do secretário-geral da ONU, divulgado em setembro, o Ruanda é identificado como um dos 38 países em que os defensores dos Direitos Humanos enfrentam represálias por cooperarem com a ONU nesta matéria.
Também em julho, de acordo com o World Report 2019 da Human Rights Watch, o Subcomité das Nações Unidas para Prevenção da Tortura (SPT) cancelou a sua visita ao Ruanda, devido à falta de cooperação das autoridades. É a primeira vez que, em 11 anos, o SPT foi levado a cancelar uma visita.
Assim como, para quem visita o Ruanda, a sua beleza e desenvolvimento económico chamam a atenção, para quem lá vive, as expressões “liberdade de expressão” e “pluralismo político” são totalmente impraticáveis.
O uso político do genocídio, para que nunca mais se repita, usando simplesmente duas palavras – segurança e divisionismo -, permite ao governo impor um totalitarismo absoluto e o uso desproporcionado de força.
A detenção de vendedores ambulantes, profissionais do sexo, crianças de rua e outras pessoas pobres nos chamados centros de trânsito continua em todo o país. A detenção nesses centros é arbitrária e as condições são severas e desumanas.
Assim como, para quem visita o Ruanda, a sua beleza e desenvolvimento económico chamam a atenção, para quem lá vive, as expressões “liberdade de expressão” e “pluralismo político” são totalmente impraticáveis. Para o estrangeiro que lá vive (ou que lá viveu, como eu), esta opressão respira-se em cada momento e em qualquer lugar. O Ruanda é um país mantido em silêncio.
Não posso terminar sem referir que, no próximo dia 29, somos convidados pelo Papa Francisco a celebrar a Jornada Mundial do Migrante e do Refugiado. O tema que escolheu é intencional: “Não se trata apenas de migrantes”. Na carta que escreveu, o Papa pretende evidenciar os nossos pontos cegos e assegurar que ninguém fique excluído da sociedade, seja residente de longa data ou recém-chegado. Desta forma, deseja ajudar a vencer o medo com a esperança, tal como n’a Bela e o Monstro ou na proteção do nosso estilo de vida europeu.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.