A «banalidade do mal» e o caso McCarrick

A presença, na Igreja, de pessoas desequilibradas não é suficiente para explicar a magnitude do escândalo dos abusos sexuais, que inclui o encobrimento sistemático, por parte das autoridades, da conduta criminosa de padres e religiosos.

No passado dia 10 de novembro, a Secretaria de Estado da Santa Sé publicou um extenso relatório sobre a forma como foram geridas pelas autoridades eclesiásticas as acusações de abuso sexual contra Theodore McCarrick, um clérigo norte-americano influente, arcebispo de Washington D.C. de 2000 a 2006, e removido do cardinalato em junho de 2018 e do estado clerical em fevereiro de 2019. Ao longo de quase 500 páginas, o relatório descreve detalhadamente a fulgurante carreira eclesiástica do ex-cardeal McCarrick, agora com noventa anos de idade, manchada por várias acusações de má conduta sexual.

McCarrick foi uma figura muito influente da Igreja Católica nos EUA. Ordenado bispo em 1977, foi sucessivamente Bispo Auxiliar de Nova Iorque (1977-1981), Bispo de Metuchen (1981-1986), Arcebispo de Newark (1986-2000) e arcebispo de Washington D.C. Criado Cardeal por João Paulo II em fevereiro de 2001, McCarrick desempenhou um papel importante na resposta da Igreja dos EUA à crise dos abusos sexuais que eclodiu em Boston, em 2004. Os rumores sobre a conduta sexual inapropriada de McCarrick, que foi acusado de abusar sexualmente de vários seminaristas das dioceses onde exerceu o ministério episcopal, remontam a 1993, prolongando-se por mais de duas décadas. Não obstante a persistência destes rumores, McCarrick foi sucessivamente elevado a posições cada vez mais proeminentes, gozando de uma quase total imunidade. O caso tornou-se mediático no verão de 2018, quando foi removido, pela Santa Sé, do cardinalato e do estado clerical.

O caso McCarrick abalou profundamente a Igreja dos EUA, ao mesmo tempo que lançou suspeições sobre o modo de proceder da Santa Sé, acusada de ocultar as acusações contra o ex-Cardeal norte-americano. O polémico arcebispo Carlo Maria Viganó acusou o Papa Francisco de, até 2018, não ter sancionado McCarrick, apesar de supostamente ter tido conhecimento da má conduta do ex-Cardeal. O relatório agora publicado invalida as acusações de Viganó contra o Papa Francisco, mas não deixa de reconhecer que o Papa João Paulo II nomeou McCarrick arcebispo da capital dos EUA, apesar de ter tido conhecimento, através de um prelado norte-americano, dos rumores sobre a má conduta do ex-purpurado. O próprio McCarrick terá escrito ao então secretário de João Paulo II, desmentindo as acusações de que era alvo. João Paulo II aceitou as justificações de McCarrick, porventura condicionado pela sua experiência na Polónia, onde supostamente o regime comunista caluniava padres católicos, acusando-os de cometerem abusos sexuais contra menores, como forma de descredibilizar a Igreja polaca.

O abuso sexual, de pessoas menores ou não, cometido por clérigos constitui, por si só, um grave escândalo que mancha gravemente a credibilidade da Igreja. No entanto, o caso McCarrick deixa a descoberto um escândalo de não menores dimensões: como é possível que seja sucessivamente elevado a postos cada vez mais elevados da hierarquia católica, incluindo o cardinalato, alguém sobre quem pesavam rumores de má conduta sexual, rumores estes que circularam durante décadas, e quase abertamente, nos ambientes eclesiásticos da Igreja Católica nos EUA? Infelizmente, este não é, na Igreja Católica, um caso isolado. De facto, a crise dos abusos sexuais cometidos por padres e religiosos católicos diz respeito, também, ao seu encobrimento por parte dos bispos e superiores religiosos, que tinham a obrigação de zelar pela integridade física e moral dos seus fiéis.

De facto, a crise dos abusos sexuais cometidos por padres e religiosos católicos diz respeito, também, ao seu encobrimento por parte dos bispos e superiores religiosos, que tinham a obrigação de zelar pela integridade física e moral dos seus fiéis.

Ao longo dos últimos anos, têm sido propostas várias explicações para o ocultamento sistemático dos casos de abuso sexual no seio da Igreja Católica. Sem ter a pretensão de apresentar mais uma explicação, atrevo-me a sugerir que uma releitura da reflexão de Hannah Arendt sobre as manifestações de «mal radical», no contexto da Segunda Guerra Mundial, pode dar-nos algumas pistas para aprofundarmos a nossa reflexão sobre a crise que continua a assolar a Igreja. Nos seus ensaios sobre o julgamento de Adolf Eichmann, responsável pela logística da deportação dos judeus para os campos de concentração, na Alemanha Nazi, Arendt defendeu uma tese polémica, mas a meu ver plausível, articulada em torno da expressão «banalidade do mal». A intuição fundamental da filósofa alemã é que o mal nas sociedades totalitárias tem a sua origem, sobretudo, na perda da capacidade de pensar e refletir de pessoas normais. Neste sentido, a expressão «banalidade do mal» refere-se ao mal cometido não por sádicos ou por pessoas mentalmente perturbadas, mas por pessoas normais que abdicaram de pensar. «O problema, no caso de Eichmann», explica Arendt, «era que havia muitos como ele, e que estes muitos não eram nem perversos nem sádicos, pois eram, e ainda são, terrivelmente normais. Do ponto de vista das nossas instituições e dos nossos valores morais, esta normalidade é muito mais aterradora do que todas as atrocidades juntas» (Eichmann em Jerusalém, p. 356).

Creio que esta intuição de Hannah Arendt pode iluminar o caso McCarrick e o encobrimento sistemático dos abusos sexuais da Igreja. Certamente que existem na Igreja, como em qualquer instituição, pessoas com uma personalidade pervertida. Parece-me, no entanto, que a presença, na Igreja, de pessoas desequilibradas não é suficiente para explicar a magnitude do escândalo dos abusos sexuais, que inclui como dimensão fundamental o encobrimento, por parte das autoridades eclesiásticas, da conduta criminosa de padres e religiosos. Talvez possamos olhar esta profunda crise como uma manifestação da «banalidade do mal»: o mal cometido por pessoas normais, como nós, mas que não foram capazes de escutar a sua consciência e por isso não puderam distinguir o bem do mal. Os abusos sexuais cometidos na Igreja Católica não teriam acontecido sem a presença, no seu seio, de clérigos e religiosos doentes e perversos. Talvez não seja menos verdade que o ocultamento continuado e sistemático destes abusos tenha a sua origem na «terrível» normalidade de pessoas que foram simplesmente incapazes de se elevar acima da sua mediocridade.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.