11 de Setembro: cair

Se Virgílio nos leva com Eneias, das praias de Cartago até à fundação de Roma, é interessante perguntar que nova cidade é que nos sentimos chamados a fundar. Ou então, se já sabemos cair, se caímos o suficiente, ou o que ainda falta cair?

A minha mãe estava grávida há já algum tempo e eu, que tinha desejado tanto ter um irmão, recordo-me bem desses dias. De facto, ou o último ano de infantário não tinha ainda começado, ou estava, como não era raro, doente, ou tinha-me sido permitido ficar por casa para acompanhar a minha mãe na licença de maternidade, mas, independentemente disso, depois de almoço, o telefone tocou. O pai pedia para ligarmos a televisão e ver o que estava a acontecer em Nova Iorque. Lembro-me muito bem daquela imagem, vista ainda numa televisão que hoje não recusaríamos chamar disfuncional. Tínhamos regressado há dois meses de umas férias no estrangeiro e nelas tinha viajado pela primeira vez de avião. Não me recordo bem, mas creio que pensei de imediato que aquilo também me podia ter acontecido a mim, e que o que via não estava previsto nos avisos de segurança dos aviões.

Não é de estranhar por isso que, ainda hoje, quando oiço análises profundas sobre o 11 de Setembro fique com a vaga sensação de que se fala de algo distante, que nunca vi em direto, tal qual a IIª Guerra Mundial. A verdade é que só mais tarde foi apresentado – sem nunca os ter realmente dominado – a conceitos como médio oriente, política internacional e terrorismo e recordo-me que quando, anos depois, vi ao jantar as imagens do início da invasão ao Iraque, o mais surpreendente para mim foi perceber que as guerras tinham um começo, e que as brincadeiras, que à altura encenava, podiam corresponder a uma realidade. De facto, num esforço de imitar tudo o que via na televisão, foi muito provavelmente a partir daí que comecei a guiar aviões de brincar contra peças de lego, que imaginava grandes aranha céus, num gesto que hoje, no mínimo, apelidaríamos de tremendo mau gosto.

Sei pelo menos que, nos anos seguintes, não me recordando de um tempo anterior àquele, fui vendo, progressivamente, diante de mim imagens de outros atentados, ora em Madrid, ora em Londres, e isso deu-me a sensação de que a qualquer momento algo poderia acontecer de forma radicalmente instantânea e inesperada diante de mim como via na televisão; que, quando estava no meio de uma multidão, poderia ter caído numa armadilha; que, ir para um lugar diferente poderia comportar um risco semelhante aos dos passageiros daqueles voos.

Mas não só isso: a nossa escola primária ficava junto a um estaleiro naval e recebia, frequentemente, visitas de ministros ou outros responsáveis nacionais e estrangeiros que, em geral, chegavam de helicóptero. Não tenho a certeza, mas o meu pai, que teve aulas naquela mesma zona, a uns 25 anos de distância, nunca deve ter pensado que a possibilidade de um daqueles helicópteros embater numa das salas de aula era real, mas eu não podia pensar o mesmo, e além do mais, é curioso que antes de conhecer figuras como Hitler ou Estaline, o nome de Osama Bin Laden se tornou para mim quase como uma presença omnipresente do mal, algo posteriormente muito influenciado pela noção de incerteza no seu paradeiro, que tinha recorrentemente. Aquela figura de barba e turbante branco podia, na mentalidade de uma criança, estar abrigada em qualquer lugar e lembro-me de várias vezes perguntar em casa se o Bin Laden já tinha morrido, para me sentir mais seguro.

Depois de tudo isto, acho que é claro que devia ter visto menos telejornais e mais desenhos animados, jogado mais à bola do que acompanhado o meu avô a ler o Expresso. No entanto, a verdade é que para além daqueles que se lembram de um antes e de um depois, como os meus pais e avós, e para além dos que nunca viveram num depois de coisa alguma, existe um curto espaço de tempo onde as primeiras memórias de algumas pessoas não foram, nem, por um lado, as promessas de uma sociedade onde o fim da história e o sucesso definitivo das democracia liberais estava próximo, nem, por outro, as sucessivas consagrações do Cristiano Ronaldo como um dos melhores jogadores de futebol de sempre, mas as imagens repetidas à exaustão de que o mundo não é, ou pode não ser, um lugar seguro.

Não deixa de ser curioso, por isso, que da mesma forma que a Eneida, que inicia com a apresentação de um Eneias em lágrimas e naufragado, sobrevivente de uma Troia reduzida a cinzas, onde se arrastam e revolvem “escudos de heróis e seus capacetes e seus corpos poderosos”, o nosso século se tenha apresentado perante nós de forma semelhante: com a pulverização de duas torres de onde saíam sobreviventes em lágrimas. Talvez, sintoma ainda desse facto seja a dificuldade crescente que temos em encontrar um equilíbrio entre segurança e liberdade, ou então, o facto de muitos de nós estarmos dispostos a prescindir da segunda em detrimento da primeira. Mas, se Virgílio nos leva com Eneias, das praias de Cartago até à fundação de Roma, é interessante perguntar que nova cidade é que nos sentimos chamados a fundar. Ou então, se já sabemos cair, se caímos o suficiente, ou o que ainda falta cair? Pois o tempo que seria a vitória definitiva do progresso, chegou-nos no seu inverso mais terrível.

Pouco mais de dois meses depois, o meu irmão nasceu. Não posso, por isso, dizer que, para mim, o 11 de Setembro foi o acontecimento mais importante em 2001, mas esta coincidência permitiu-me intuir, mais tarde, que a vida segue sempre tranquilamente depois da tragédia, ainda para mais se pensar que, por ironia, hoje em dia o meu irmão estuda aviação.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.