Tornar o português mais português

Exposição I´m your mirror, de Joana Vasconcelos, no Museu de Serralves, reúne as obras mais importantes da artista que valoriza o português genuíno e enaltece-o. E depois faz o convite revolucionário da contemporaneidade – à autenticidade.

Exposição I´m your mirror, de Joana Vasconcelos, no Museu de Serralves, reúne as obras mais importantes da artista que valoriza o português genuíno e enaltece-o. E depois faz o convite revolucionário da contemporaneidade – à autenticidade.

Está reunido no museu de Serralves (Porto), em parceria com o museu de Guggenheim (Bilbau), aquele que até agora é o maior espólio de obras de arte da artista plástica Joana Vasconcelos. I’m Your Mirror é o nome escolhido para a exposição que conta com a presença de mais de 30 peças, entre as quais se encontram as mais importantes da carreira da artista.

Em I’m Your Mirror o público pode encontrar aquilo que se poderia apelidar por grito das necessidades. Ao utilizar uma linguagem contemporânea e extravagante, muitas vezes através de peças de grandes dimensões, Joana Vasconcelos pretende falar, e fala. Através das artes plásticas, Joana Vasconcelos fala das suas necessidades. Fala também das necessidades de quem a vê nas suas obras. Fala das necessidades dos diretores dos museus que a recebem. Fala das necessidades de uma sociedade, de uma cultura e de um mundo. E, por isso, merece ser escutada. Porque, sendo o grito a expressão de uma necessidade tão presente e abrangente, deve ser acolhido e compreendido. Afinal, a contemporaneidade das obras de Joana Vasconcelos desconstrói a história, os valores, os preceitos…Aquilo que durante décadas foi tido por aceite.

Joana Vasconcelos tira, inevitavelmente, o tapete ao conformismo, em cima do qual nos mantemos senhores, resignados aos apetites que acabam por pautar a nossa vida. Por exemplo, a obra “Portugal a Banhos” (2010)evoca um Portugal costeiro embrenhado num aceite consumismo de luxo pela normalidade com que cada particular possui uma piscina privada. Por outro lado, “Call Center” (2014) – uma grande pistola beretta constituída por dezenas de telefones – reflete, com o constante tocar dos telefones, uma sociedade call center em que o excesso de comunicação electrónica conduz à morte da verdadeira comunicação.

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Fotografia: © LV – Fundação/Museu de Serralves.

Ao mesmo tempo, a artista reveste peças de louça Bordalo Pinheiro com croché de algodão fino – dois estilos tão característicos da tradição e da cultura portuguesas – que conjugados se apresentam como um condensado aprimorado daquilo que é o nosso Portugal; tornando o português mais português. Mais português, não simplesmente pela soma de dois produtos característicos, mas pelo aprofundamento da própria essência que pode emergir como fruto de uma junção genial ou, também, de um exercício desinstalador.

Com a peça que dá nome exposição – I’m your Mirror (uma enorme máscara veneziana construída com pequenos espelhos também eles venezianos) – a artista desvela o segredo subjacente à arte contemporânea: a autenticidade. O que a Máscara Veneziana de Joana Vasconcelos diz é: sê a tua verdade, sê tu mesmo, sem máscaras, sem o preconceito que não te permite ir além da superficialidade de um mundo que se debruça sobre a sua própria imagem; sem o preconceito de que todos temos de achar as mesmas coisas e concluir o mesmo; sem o preconceito que, no fundo, não te permite acolher e descobrir a maravilha do que se apresenta como diferente.

I’m your mirror é, assim, um convite à autenticidade e à aceitação da autenticidade do outro, mesmo quando esta se reflete na interpretação diferente de uma mesma peça artística.

I’m your mirror é, assim, um convite à autenticidade e à aceitação da autenticidade do outro, mesmo quando esta se reflete na interpretação diferente de uma mesma peça artística.

Quando, em entrevista ao jornal Observador, a artista sublinha a relevância da autonomia da obra de arte, além das suas motivações enquanto autora, Joana Vasconcelos revela ser necessária uma liberdade por parte do artista em relação à peça. Liberdade sempre exigente e fruto de um exercício ascético pouco óbvio. Contudo, sempre que o artista se desvincula da própria peça, entrega-a, de forma descomprometida, à interpretação daquele que a quiser ver, privilegiando a experiência pessoal. A experiência pode revelar-se, assim, desinstaladora ao transcender para o mistério aquele que a priori estava instalado num conformismo de certezas.

A arte contemporânea, embora incompreendida por muitos, marginalizada e até desprezada, esconde um mistério não evidente. A arte tem a capacidade de extrapolar qualquer compreensão racional e enviar aquele que a experimenta para uma realidade nova que desinstala e apela à conversão. A obra de arte não fica, assim, reduzida à habilidade do artista– que encerra o observador num efeito evidente – mas fala de algo mais. E é nesse mais, em que o ser humano não controla e se questiona, que este se pode construir mais profundamente. O papel do verdadeiro artista é, assim, o de proporcionar as condições para a experiência e, depois, sair de cena, possibilitando o encontro entre a peça, na sua essência, e aquele que agora participa dela ao experienciá-la.

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Fotografia: © LV – Fundação/Museu de Serralves.

Portanto, seria um erro reduzir Joana Vasconcelos a uma crítica irresponsável da história e da tradição. Pelo contrário, a sua análise irreverente explora a profundidade que estas encerram. Parece-me ser isso, justamente, o que mundo necessita e a contemporaneidade grita – uma carência urgente de profundidade e autenticidade no centro de uma cultura por vezes oca e superficial. Paradoxalmente, Joana Vasconcelos acaba por tornar o português mais português. Ao contrário do que se poderia esperar, a sua arte não se traduz numa alienação utópica. A artista valoriza a genuinidade da nossa tradição e enaltece-a. Parte da terra, do palpável e conhecido. Valoriza o português genuíno e enaltece-o. E, é exatamente através da tradição – daquilo que é do conhecimento do português – que faz o convite revolucionário da contemporaneidade – o convite à autenticidade.

A arte pode, então, ser entendida como um veículo de profundidade e autenticidade, mesmo quando expressa como uma espécie de grito exuberante,que à partida tendemos a rejeitar. Ao apelar à abertura ao diferente não só possibilita o seu acolhimento, como põe em questão o que é familiar, aprofundando, paradoxalmente, a familiaridade. Esta abertura, porém, só é possível se na arte não se privilegiar, propriamente, normas descodificadoras (que a limitariam), mas, antes, a possibilidade de revelar sempre mais do que é revelado.

Todas as fotografias:  © LV – Fundação/Museu de Serralves.


Joana Vasconcelos  – I’m your mirror
até 24 de junho

Museu de Serralves (Mapa Google)
R. Dom João de Castro 210, 4150-417 Porto
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Horário:
2ª a 6ª – 10 a 19h I fim de semana e feriados: 10 – 20h

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.