“Arrupe tinha dentro de si ‘uma semente de futuro’”

Pedro Lamet, sj, jornalista, escritor e um dos principais biógrafos de Pedro Arrupe, vem a Lisboa, a convite do Ponto SJ e da editora Tenacitas, falar do processo de beatificação de Arrupe e do seu novo livro.

Pedro Lamet, sj, jornalista, escritor e um dos principais biógrafos de Pedro Arrupe, vem a Lisboa, a convite do Ponto SJ e da editora Tenacitas, falar do processo de beatificação de Arrupe e do seu novo livro.

O P. Pedro Lamet, sj nasceu em Cadiz a 13 de março de 1941 e entrou na Companhia de Jesus em 1959. Já publicou dezenas de livros, vários deles traduzidos em português, e fala do P. Pedro Arrupe com uma paixão indisfarçável. No próximo dia 18 à noite, estará no Colégio de São João de Brito, em Lisboa, para dar uma conferência sobre o processo de beatificação do antigo Geral da Companhia de Jesus e para apresentar o seu ultimo livro Saborear e Saber”. Antecipando a sua vinda, o Ponto SJ quis saber como recebeu a notícia da abertura deste processo de beatificação e que revelasse o que motivou a escrita do seu último livro.

Como jesuíta e profundo conhecedor de Pedro Arrupe, como recebeu a notícia do início do seu processo de beatificação?

Com grande alegria. Estava convencido de que a abertura do processo acabaria por acontecer mais cedo ou mais tarde, mesmo que houvesse algum pessimismo a esse respeito. Repare que o anterior geral dos jesuítas, o P. Adolfo Nicolás, disse-me, há alguns anos, que o assunto não era consensual porque ainda havia no Vaticano monsenhores contrários a Arrupe. O cardeal espanhol Enrique y Tarancón afirmou, há já muitos anos, que Arrupe se tinha adiantado ao seu tempo e que o mundo não estava suficientemente preparado para compreendê-lo totalmente. Ter-se-ia que esperar pela hora de Arrupe e, felizmente, essa hora chegou. Ainda que eu acredite que ele já fosse um santo sem altar.

Que significado encontra neste acontecimento no contexto atual da Igreja e do mundo?

Se Arrupe sofreu nove anos de martírio incruento e incompreensões, mesmo por parte do Papa e da Igreja que amava, foi porque o seu sentido profético apontava para acontecimentos que hoje estão na ordem do dia, como a injustiça social, a toxicodependência, o diálogo Oriente – Ocidente, o ecumenismo, a juventude, a obsessão de uma Europa centrada em si mesma, a libertação dos povos em desenvolvimento.
E, em especial, o problema dos refugiados. Arrupe adiantou-se a este drama ao criar o JRS – Serviço Jesuíta aos Refugiados quando contemplou essas pessoas sem rumo que eram os “boat people”. Foi por isso que intitulei a biografia que fiz de Arrupe com o título “Arrupe, testemunha do século XX, profeta do século XXI.” Arrupe é um santo para os nossos dias, “um homem para a eternidade.”

Do contacto pessoal que teve com ele e do que conhece da sua vida, quais são as marcas de santidade que destacaria?

A graça de Deus trabalha a partir da matéria humana que encontra. E, por isso, há alguns santos taciturnos, outros tímidos, alguns alegres, etc. Arrupe tinha uma base humana excelente: era ativo, emotivo, secundário. Possuía um magnetismo especial: alegria e otimismo. Diziam-lhe que padecia de um otimismo patológico. Arrupe respondia: “Como não hei-de ser otimista se acredito em Deus?” Encarnava de uma forma excelente o “magis” inaciano. Depois da sua morte, encontrou-se uma pequena estampa em que constava o seu voto de perfeição (escolher o mais perfeito entre as diferentes opções). Mas o que mais me marca da sua santidade é que era magnânimo e generoso com os outros e muitíssimo austero consigo mesmo. Comia e dormia muito pouco. No dia em que foi eleito Geral, o irmão jesuíta que preparava as coisas para a missa perguntou-lhe: “Amanhã preparo as coisas para celebrar a missa às 7h00?” Respondeu-lhe Arrupe: “Por favor irmão, não me corte a manhã a meio”. Pode-se ser santo e muito simpático. Mas o que mais encantava em Arrupe era a sua humildade: “Sou um pobre homem que procura não colocar impedimentos à graça de Deus”, dizia.

“Aquilo porque te apaixonas, muda a tua vida.” Arrupe aplicava este principio à sua relação com Jesus Cristo. E isso transparecia sem que precisasse de dizê-lo.

Como descreveria Arrupe enquanto homem interior? Que aspetos da sua relação com Jesus mais o impressionam?

O mais importante era o tempo dedicado à oração. Já no noviciado, fazia mais uma hora de oração do que os seus companheiros. Sendo órfão de pai e mãe, o seu diretor espiritual mostrou-lhe, quando ainda era criança, um quadro de Jesus e Maria. Enamorou-se deles de forma apaixonada. “Aquilo porque te apaixonas, muda a tua vida”, chegaria a dizer mais tarde. Aplicava este principio à sua relação com Jesus Cristo. E isso transparecia sem que precisasse de dizê-lo. Como rezava sentado à maneira oriental, um dia perguntei-lhe de que estilo era a sua oração: contemplativa, de quietude, ocidental, oriental. Respondeu-me: “de todos os estilos”. Creio que era um místico, unido a Deus, desprendido de si mesmo e, como ele dizia, “um homem para os outros”.

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P. Pedro Arrupe com P. Pedro Miguel Lamet 1970

É muito fácil ouvir Arrupe ser acusado de ter sido “comunista”. Que base real tem esta acusação? Qual a relação de Arrupe com a Teologia da Libertação?

Um dia comentei com ele essa acusação. Fartou-se de rir: “Comunista, eu?” No fundo, Arrupe vivia uma piedade tradicional: devoção ao Sagrado Coração de Jesus, oração do terço, etc. Mas era um homem de diálogo com todos e de todos. Nos anos quarenta, quando era mestre de noviços em Hiroxima -, onde viveu a bomba atómica cuja explosão fez sobressair nele uma energia universal – dialogava com monges Zen e aprendia as suas técnicas espirituais. Tinha dentro de si “uma semente de futuro” e de mudanças culturais. Quanto à Teologia da Libertação, como não a conhecia bem, pediu ao teólogo espanhol radicado em El Salvador, Jon Sobrino que lhe desse aulas durante três dias. Este teólogo dizia sobre ele: “Acredito que Arrupe fez com que a Companhia fosse um pouco mais de Jesus”. Desde os tempos de estudante universitário, nos subúrbios de Madrid,  tinha na alma o grito dos pobres.

Nenhum ser humano, devido à  sua limitação, pode alcançar a verdade completa. Todos temos parcelas de verdade que há que saborear e valorizar.

O que motivou a escrita do seu último livro “Saborear e Saber”?

A minha própria procura. Há momentos em que precisas de uma palavra que te tire da angústia, te liberte.
Recolho em forma de “pastilhas” algumas respostas que encontrei para mim mesmo sobre o “ego”, a dor, a falta de sentido, a paz interior. Quando consegues despertar e ver claro, tudo se ressitua. Partindo de um saber que é sobretudo uma compreensão intuitiva, chega-se a poder saborear o dom que é viver. Mas antes disso, é necessário despertar, romper com as ideias feitas, libertar-se da manipulação de uma sociedade atordoada e consumista. E então, podes ler o Evangelho de uma forma surpreendentemente nova.

Neste livro recolhe ensinamentos de diversas religiões. Teme que o apelidem de sincretista, de ser influenciado por tendências new age?

Parto do princípio de que o ser humano foi bem feito. Aquilo que nos estraga é a superficialidade, acreditar que somos o personagem com o qual nos identificamos. Qualquer pessoa de boa vontade, de qualquer religião ou que inclusivamente se tenha perdido numa ilha, senta-se, torna-se consciente dos seus pensamentos e une-se ao seu interior que está ligado ao Ser, a Deus, pode salvar-se, pode libertar-se. Isto não é sincretismo, é doutrina da Igreja e do Concílio. E, para além disso, nenhum ser humano, devido à sua limitação, pode alcançar a verdade completa. Todos temos parcelas de verdade que há que saborear e valorizar. Por isso, temos que ter um ouvido capaz de escutar a todos, aberto ao diálogo entre culturas e religiões como desejava Arrupe. Além do mais, o Evangelho, que para mim é o caminho de luz mais pleno, perpassa todo o livro.

Como pode esta obra ajudar-nos a uma maior profundidade e a uma atitude de compreensão e diálogo diante de quem é diferente?

Lembro-me que, estando na cidade sagrada de Nara (Japão), um monge Zen olhou-me nos olhos e disse-me: “Sê plenamente o ser que já és”. Somos como uma cebola com múltiplas camadas criadas pelos papéis que representamos, as máscaras que usamos, a imagem que queremos projetar. A meditação, a libertação da culpa pelo passado e do medo face ao futuro, conduz-nos ao “agora” que se liga à eternidade. Um dia Arrupe ensinava adultos em Hiroxima e um senhor permanecia calado. Arrupe perguntou-lhe qual era a sua opinião a propósito do que tinha dito. E ele respondeu: “não posso opinar porque sou surdo e não ouvi nada. Mas digo-lhe uma coisa. Vi-o e acredito naquilo em que o senhor acredita.” Mais tarde, Arrupe diria aos seminaristas da Tailândia. “Que vos sigam não pelo que pregarem, mas pelo que forem.”
Como Jesus, quando despertas e te unes ao que és em Deus, podes dizer: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Nesse caso, não é o eu pequeno que fala, mas o eu profundo que revela Deus como aquele que te atrai e fala através de ti. Isso permitiu a Arrupe pronunciar a sua última frase: “Ao presente amém; ao futuro, aleluia”.

Foto de capa: Jesús Martín – The living culture magazine

Versión en español 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.