Outrora é agora

Outrora e outros tempos, um livro de Olga Tokarczuk, Prémio Nobel da literatura em 2018, é a sugestão de leitura de Rita e Inês Serra Lopes.

Outrora e outros tempos, um livro de Olga Tokarczuk, Prémio Nobel da literatura em 2018, é a sugestão de leitura de Rita e Inês Serra Lopes.

Quando terminei “Outrora e outros tempos”, de Olga Tokarczuk, e sonhei com as personagens Misia e Ruta que, assim, continuaram as suas vidas literárias no meu sonho, percebi que este fora dos livros que mais me marcaram até hoje. Por ser um belíssimo exemplar de tudo o que um livro tem de bom: é fácil de ler (mais do que Viagens, da mesma autora), é absolutamente cativante, é enriquecedoramente profundo e perturbador, um trabalho notável de construção de uma narrativa de forma direta, muito concreta e ao mesmo tempo mágica, e faz-nos sonhar, como toda a boa literatura. Quando dou vida às personagens dos livros e as faço continuar a viver através de mim, sei, como me ensinou alguém, que foi um excelente livro.

Originalmente publicado em 1996, o livro só foi traduzido para português em 2020. Se Gabriel Garcia Marquez fosse polaco e nascido em 1962, talvez tivesse escrito algo como Outrora e Outros Tempos, em vez de Cem Anos de Solidão. Porque ambos retratam, com traços de realismo mágico que o último praticamente inventou e a primeira levou a um outro patamar, uma aldeia e a história de um país (e de um mundo), através de três gerações.

Outrora é uma aldeia com fronteiras bem definidas, que não se entende se são físicas e reais ou apenas construções mentais e, até, mágicas, ou ambas — saberemos nós o que são barreiras verdadeiras ou construções mentais? — e isso terá impacto na vida dos seus habitantes ao longo do livro.

As três sucessivas gerações levantam questões e vivências pertinentes. Através dos “tempos” de cada um, há uma permanente lembrança da finitude de tudo e da continuação e destruição inerentes a todas as famílias.

As personagens são todas muito especiais, não fosse a autora adepta das fábulas e das parábolas. Ninguém se esquecerá de Genowefa, que dá o mote para o início do livro, e do seu moinho, que simboliza tanta coisa, nem de Eli, o seu amor impossível. Há gerações que ficam, gerações que vão. Gerações que triunfam, gerações que fraquejam. Guerras que se vencem, guerras que se perdem. Sonhos alcançados, sonhos perdidos. Devoções e traições. E este é com certeza, daqueles livros que ficarão para sempre, porque se não ficar escrito, desaparece…

[O discurso de Olga Tokarczuk na aceitação do prémio Nobel da literatura é imperdível, se gostar do livro, não deixe de o ler].

Fotografia de destaque – Harald Krichel – Wiki Commons

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.