Ensino público e respeito pelas convicções dos pais

A Constituição proíbe a programação da educação por directrizes filosóficas, religiosas e políticas, mas não diz o que deve entender-se por educação “programada” nesse sentido. Esta importante e difícil questão deveria ser o cerne do debate

A Constituição proíbe a programação da educação por directrizes filosóficas, religiosas e políticas, mas não diz o que deve entender-se por educação “programada” nesse sentido. Esta importante e difícil questão deveria ser o cerne do debate

O Ponto SJ lançou o debate sobre o tema da Educação para a Cidadania. Este é um dos artigos que se insere nesta reflexão alargada. Para aceder a este dossier, clique em Ed. Cidadania.

1. O debate em torno da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento levanta diferentes questões. Penso que alguns elementos da minha área do conhecimento – o direito – que são importantes para esse debate não têm sido explicitados, até aqui, de forma clara.

2. O direito ao respeito das convicções filosóficas e religiosas dos pais na educação dos filhos, que está implícito nos artigos 36.º, n.º 5, e 43.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa, está expressamente consagrado em várias declarações de direitos e convenções internacionais a que Portugal está vinculado. O artigo 2.º do primeiro protocolo adicional à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) é o exemplo mais conhecido, mas não o único: também o artigo 26.º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, e o artigo 18.º, n.º 4, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, devem ser mencionados.

O processo de desenvolvimento das crianças precisa de protecção e orientação, à medida das necessidades e capacidades da criança. No nosso modelo de sociedade, essa protecção e essa orientação estão primariamente atribuídas à família. Todos os pais procuram que as crianças levem, para a sua vida adulta (e para as suas escolhas livres), um conjunto de valores ou simples atitudes perante a vida, que contribuem para a felicidade dos seus filhos e para uma sociedade mais justa. Ora, todos nós pensamos coisas diferentes sobre o que é prioritário transmitir aos nossos filhos para esse efeito. É essa diferença que é protegida pelas normas a que acima fiz referência; elas asseguram o respeito pelas diferentes opções educativas.

O processo de desenvolvimento das crianças precisa de protecção e orientação, à medida das necessidades e capacidades da criança. No nosso modelo de sociedade, essa protecção e essa orientação estão primariamente atribuídas à família.

O direito dos pais a fazer opções educativas para os filhos não é, obviamente, absoluto, sendo hoje inequívoca a autonomia da posição da criança, e o interesse geral na regulação pública da educação. O artigo 26.º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, por exemplo, refere-se à prioridade dos pais na escolha do género de educação a dar aos filhos, o que é correcto, pois afirma a solução-regra e também deixa margem para reconhecer que há motivos atendíveis de interesse geral que permitam ao Estado intervir nas tarefas educativas. A educação é um instrumento de emancipação, e assim se compreende, por exemplo, a existência de escolaridade obrigatória, que também tem estatuto de direito humano – das crianças, naturalmente. Mesmo aí, porém, se manifesta aquela prioridade dada aos pais, já que a escolaridade obrigatória pode ser feita, por opção dos pais, em ensino público ou particular (existindo um debate, ainda não fechado, sobre a questão de saber se o pleno respeito pelas opções educativas dos pais não exigiria o financiamento público do ensino privado em graus de escolaridade obrigatória).

A estes dados deve ainda juntar-se um outro. A Constituição portuguesa, depois de prever, no seu artigo 43.º, n.º 1, a liberdade de aprender e ensinar, estabelece que – e por esta ordem – “[o] Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (n.º 2), e que “[o] ensino público não será confessional” (n.º 3). Estas importantes opções da Constituição de 1976 reagem àquilo que era, manifestamente, um excesso de direcção política e ideológica no domínio educativo no regime político anterior ao 25 de Abril de 1974.

Os dados anteriores permitem, assim, fazer uma síntese. O direito dos pais a uma educação que respeite as suas convicções visa proteger as diferentes opções educativas, que são legítimas; não exclui a intervenção pública na educação, que também é suportada em motivos de interesse geral e em benefício dos direitos da pessoa em formação; mas coloca limites a essa intervenção pública, pois proíbe a intervenção pública excessiva sobre conteúdos respeitantes às convicções mais profundas: a educação pública não pode servir para o endoutrinamento (na expressão normalmente utilizada) das pessoas, pois todas as experiências de endoutrinamento público na educação resultaram na diminuição inaceitável da liberdade das pessoas.

O direito dos pais a uma educação que respeite as suas convicções visa proteger as diferentes opções educativas, que são legítimas; não exclui a intervenção pública na educação, que também é suportada em motivos de interesse geral e em benefício dos direitos da pessoa em formação; mas coloca limites a essa intervenção pública, pois proíbe a intervenção pública excessiva sobre conteúdos respeitantes às convicções mais profundas: a educação pública não pode servir para o endoutrinamento.

3. A Constituição proíbe a programação da educação por directrizes filosóficas, religiosas ou políticas, mas não diz o que deve entender-se por uma educação “programada” nesse sentido, uma importante e difícil questão que deveria constituir o cerne do debate em curso.

Infelizmente, o nível do debate sobre tal questão tem sido, muitas vezes, superficial. Alguns invocam genericamente os “temas” da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, como os direitos humanos, retirando daí, de forma precipitada, que o ensino de tais matérias nunca pode ser considerado contrário à Constituição.

Contudo, o que interessa para saber se a Constituição é cumprida não é conhecer temas gerais do ensino, mas aquilo que se diz, e como se diz, aos alunos. Por exemplo, o currículo de uma disciplina obrigatória de Cidadania e Desenvolvimento pode ter, como um dos temas, “a religião”. A partir desse tema geral, o currículo tanto pode pretender sensibilizar os alunos para a existência de múltiplas religiões e para a necessidade de respeito pela liberdade religiosa, o que não apresenta qualquer problema, como procurar impor aos alunos uma visão hostil à religião, caso em que já estaria a ser violada a Constituição.

Tudo isto tanto é verdade para uma disciplina como Cidadania e Desenvolvimento, como para qualquer outra disciplina. É consensual nas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), que mais tem enfrentado estas questões, que o dever de respeitar as convicções filosóficas e religiosas dos pais se aplica transversalmente a todo o currículo escolar e mesmo a todas as actividades escolares.

4. Poderá a escola pública falar aos alunos sobre temas que possam ser incómodos a certas convicções filosóficas ou religiosas dos pais? Claro que sim. Não há um direito a não ser interpelado nas suas convicções profundas. Mas há, claramente, certas condições que devem ser cumpridas quando se abordam temas que, legitimamente, possam lesar o direito às próprias convicções.

Não há um direito a não ser interpelado nas suas convicções profundas. Mas há, claramente, certas condições que devem ser cumpridas quando se abordam temas que, legitimamente, possam lesar o direito às próprias convicções.

O TEDH há muito vem entendendo que certos conteúdos que podem, em abstracto, desafiar as convicções filosóficas ou religiosas dos pais, podem, ainda assim, ser incluídos no currículo obrigatório das escolas públicas, desde que existam motivos de interesse geral atendíveis e desde que esses conteúdos sejam, na substância e na forma como são ensinados, “objectivos, críticos e pluralistas”. Todos os conteúdos que não reúnam esses predicados e realmente possam perturbar as convicções profundas dos pais (não estão aqui em causa, como se imagina, meras discordâncias ou diferenças de opinião, mas conteúdos que legitimamente atingem pontos sensíveis das convicções profundas) só podem ser oferecidos no currículo escolar público como facultativos.

O critério afirmado pelo TEDH não é isento de reparos, e, como seria de esperar, levanta dúvidas, em casos difíceis. O que é certo é que o Tribunal tem sido exigente e minucioso nesta análise. Em 1976, no importante acórdão Kjeldsen e outros c. Dinamarca, admitiu-se a inclusão de referências à sexualidade no currículo obrigatório, mas só depois de uma análise detalhada que permitiu ao Tribunal ressalvar que os conteúdos eram informativos e não promoviam a sexualidade precoce. Num outro acórdão, de 2007 (Hasan e Eylem Zengin c. Turquia), o Tribunal considerou que o ensino público na Turquia, ao referir-se ao Islão apresentando apenas a sua corrente sunita, e não reflectindo, por isso, a particular denominação xiita perfilhada pelo queixoso (pai de uma aluna), pela sua família, e por boa parte dos cidadãos turcos, violava o critério da informação “objectiva, crítica e pluralista”. Ou seja, o currículo foi censurado por ser tendencioso.

Estas distinções são, em alguns casos, subtis; mas são necessárias para preservar a liberdade de quem aprende (o aluno) e de quem tem o direito (e dever) de orientar essa aprendizagem (os pais).

Pode ainda perguntar-se se a invocação do desrespeito de convicções filosóficas ou religiosas, ainda que se verifique apenas em relação a certos conteúdos curriculares, legitima uma posição de recusa total da frequência de uma disciplina.

Pode ainda perguntar-se se a invocação do desrespeito de convicções filosóficas ou religiosas, ainda que se verifique apenas em relação a certos conteúdos curriculares, legitima uma posição de recusa total da frequência de uma disciplina.

Também aqui, a jurisprudência do TEDH dá algumas indicações. Numa outra decisão (Folgero e outros c. Noruega), o Tribunal analisou um regime (em vigor, na altura, na Noruega) no qual era permitido aos pais recusar apenas alguns conteúdos de uma disciplina de “Cristianismo e cultura”, mas não a disciplina toda. O Tribunal considerou que o sistema era demasiado complexo, e que não era exigível aos pais que seleccionassem, de entre todos os pontos do currículo, apenas aqueles que ofendiam as suas convicções. Assim, considerou (numa decisão controversa) que a imposição da frequência da disciplina, mesmo com aquela possibilidade de dispensa parcial de alguns conteúdos, violava a CEDH.

Por aqui se percebe que a recusa de frequência de toda a disciplina pode ser a única forma de conseguir o respeito pelo direito dos pais (e das crianças) a uma educação respeitadora das suas convicções, mesmo que apenas parte do currículo da disciplina seja afectada.

5. Saber se a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, em Portugal, hoje, passa estes testes, é uma questão complexa, que exige olhar, em detalhe, para os conteúdos concretos, e não apenas para os temas gerais. Percorrendo os temas gerais do currículo, parece óbvio que se trata de coisas das quais é preciso falar com as crianças e jovens.

O que também parece certo é que olhando para alguns dos conteúdos concretos, redigidos ou validados pelas autoridades educativas, eles suscitam, pelo menos, algumas perplexidades, na abordagem ao tema da identidade de género (não igualdade de género; um dos problemas do debate tem sido o de ignorar esta diferença; não se trata de protestar contra a ideia da igualdade de direitos entre pessoas, mas sim do que o currículo diz ou pode dizer sobre o que é a identidade de género das pessoas).

As perplexidades que resultam da leitura desses conteúdos, extensos “guiões” sobre género e cidadania, decorrem do que parece ser, em diversas passagens, uma inequívoca adesão, por parte de quem os escreve, a certas posições inegavelmente controversas (embora se procure apresentá-las como consensuais e “científicas”) sobre a identidade de género, como algo que seria possível viver de forma estritamente individual e subjectiva, sem outros parâmetros que não os da vontade do próprio sujeito.

As perplexidades que resultam da leitura desses conteúdos, extensos “guiões” sobre género e cidadania, decorrem do que parece ser, em diversas passagens, uma inequívoca adesão, por parte de quem os escreve, a certas posições inegavelmente controversas (embora se procure apresentá-las como consensuais e “científicas”) sobre a identidade de género, como algo que seria possível viver de forma estritamente individual e subjectiva, sem outros parâmetros que não os da vontade do próprio sujeito.

Podemos tomar algumas passagens do Guião referente ao 2.º ciclo, destinado a enquadrar o que se pretende que os alunos aprendam. Tendo isso em vista, há fundadas dúvidas que seja acertado falar na “ingenuidade (…) de remeter para carateres físicos do corpo uma questão de identidade pessoal e social” (p. 12), ou citar a “perspectiva pós-moderna de que o sexo, tal como o género, é também uma construção sócio-histórica” (p. 118), sempre sem dar uma palavra à radical controvérsia em torno de tais ideias. O Guião segue o pensamento de alguns autores e chega a pronunciar-se sobre aquilo em que não se pode acreditar: “Por esta razão, e seguindo o pensamento de Conceição Nogueira (2001), não pode continuar a acreditar-se que diferenças de natureza estática, bipolar e categorial se situam dentro dos indivíduos e que os sexos são opostos”, continuando-se depois com a denúncia da “falsa dicotomia” de “dividi[r] as caraterísticas e as atividades em masculino e feminino”, “fazendo crer que a diferença estaria na natureza dos seres e não num processo de aprendizagem e de apropriação diferencial de normas e valores”, e concluindo-se ser “necessário desconstruir toda a lógica determinista usada para prescrever a homens e mulheres atributos, competências e interesses decorrentes da diferenciação biológica” (p. 26).

A omissão de perspectivas diferentes das que o Guião perfilha é, de facto, um aspecto que o caracteriza. Culpabiliza-se, como “comportamento sexista”, a tendência de crianças (no exemplo dado, um rapaz de quatro anos) de escolher mais facilmente companheiros de brincadeira do mesmo sexo (p. 20), não se dando espaço à interrogação sobre a possibilidade de tal comportamento ser algo normal para essa fase de desenvolvimento, e que não se justifique encarar negativamente. Num guião de 235 páginas sobre igualdade de género, que constantemente apela à valorização do papel da mulher, a palavra “maternidade” surge apenas duas vezes, sempre com conotação negativa, a título de exemplo de estereótipos de género (pp. 11, 35); e em algumas passagens bastante infelizes (pp. 149, 151), as mães que ficam em casa são apresentadas como estando, por isso, em “posição subalterna” e “subordinadas” (sic) aos maridos que têm “emprego”. Visão semelhante é reservada à religião, referida como fonte de estereótipos de género (pp. 15, 28), ignorando assim a riqueza das diferentes tradições religiosas, a sua importância na valorização das mulheres e os próprios debates internos que existem nas confissões religiosas sobre esta temática.

Os postulados incluídos nestes materiais parecem, assim, ser afirmados mais numa lógica de persuasão e convencimento, do que numa lógica aberta, de colocação de questões e interrogações num espaço de cidadania plural. Não se sente, naquelas páginas, distanciamento crítico, ou ressalvas suficientes que abrissem um espaço de divergência e preservação das convicções e opções de cada um. E é daqui que resulta o perigo de promoção de um pensamento único ou ideal, algo que é contrário à própria essência da educação em Estado de Direito democrático e plural.

 

Nota: o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.