Dois caminhos, uma missão

João Francisco Gomes queria ser padre mas o bispo trocou-lhe as voltas e acabou por desistir da ideia e tornar-se jornalista. Anos mais tarde, já no Observador e com apenas dois anos de profissão, uma entrevista ao mesmo bispo valeu-lhe um prémio de jornalismo.

João Francisco Gomes queria ser padre mas o bispo trocou-lhe as voltas e acabou por desistir da ideia e tornar-se jornalista. Anos mais tarde, já no Observador e com apenas dois anos de profissão, uma entrevista ao mesmo bispo valeu-lhe um prémio de jornalismo.

João Francisco queria ir para o seminário. O seu percurso no pré-seminário precisava de dar um salto, seguir um caminho mais exigente. Ao saber que o bispo ponderava abrir o seminário menor para acolher os seminaristas que iam passar para o secundário, João ficou entusiasmado, pois estava disposto a sair de casa para ser padre. Mas foi com enorme desilusão que soube que, afinal, não havia quórum para avançar com a intenção: “eram precisos cinco seminaristas, e só três estávamos para aí virados”, recorda. “Por isso, fui falar com o bispo e dizer-lhe que, com isso, ele ia perder pelo menos um seminarista”. D. António Marto, responsável da diocese de Leiria-Fátima, acolheu o desapontamento do jovem pré seminarista mas assegurou-lhe que se ele quisesse mesmo ser padre, não seria por isso que deixaria de o ser.

O episódio passou-se há mais de sete anos, recorda João Francisco Gomes, agora jornalista do Observador. E a verdade, acrescenta, entre risos, é que “afinal o bispo é que tinha razão”. Na sequência deste percalço, João empenhou-se no estudo da física e astrofísica e fez o secundário na área de ciências e tecnologia, ao mesmo tempo que a vida religiosa ia perdendo o interesse, acabando por desistir de ir para o seminário. Curiosamente, anos mais tarde, foi nas letras e no jornalismo que se empenhou de corpo e alma, reencontrando a sua vocação enquanto jornalista de religião. Nessa qualidade foi distinguido no ano passado com o prémio de jornalismo D. Manuel Falcão, distinção atribuída pela Conferência Episcopal Portuguesa a profissionais da comunicação que publiquem trabalhos sobre Igreja. A entrevista que deu origem a este prémio veio a propósito da visita do Papa Francisco a Fátima, e foi feita por João Francisco Gomes ao bispo que está no início desta história: D. António Marto.

A coincidência encerra alguma ironia mas este é um facto absolutamente tranquilo para João Francisco Gomes que, aos 22 anos, recorda, com graça, estes encontros com D. António Marto: o primeiro para o pressionar a abrir o seminário menor; o segundo, alguns anos mais tarde, para escutar a sua história pessoal e daí publicar uma entrevista de vida. “O sacerdócio é um dos caminhos possíveis para quem está no pré-seminário e a dada altura achei que era esse o meu caminho. Achava que andar no seminário menor é que me ia levar a ser padre. Mas a meio do último ano do pré-seminário (que continuou a frequentar) convenci-me que o meu caminho não era por aí”.

A saída foi natural e pacífica, subscreve o P. André Batista, que acompanhou todo o percurso de João no pré-seminário, que passava por encontros mensais com outros rapazes mas também por uma orientação espiritual personalizada e permanente. “Na altura, a questão do sacerdócio foi-lhe posta abertamente. Ele rezou, reflectiu e achou que não era por ali”, recorda, sublinhando que o jovem João sempre se destacou pela disponibilidade, pela amizade e relação fácil que tinha com os outros, mas também por uma procura intensa das razões da fé. “Era um inquieto, queria sempre saber mais”. André Batista traz à memória o conselho dado na hora da partida: “Pedi-lhe que, onde quer que estivesse, testemunhasse sempre a sua fé e fosse fiel àquilo em que acreditava. E hoje vejo, com satisfação, e até um certo orgulho, que é isso que ele procura fazer”.

A atribuição de um prémio como este é mais do que merecida, considera o padre que também é um amigo, ainda mais para um profissional que mal completou dois anos de profissão. André diz que os artigos escritos por João no Observador demonstram a exigência e o rigor que impõe a si próprio, bem como o desejo de compreender e de explicar aos outros aquilo que nem sempre parece fácil, pois os temas da fé estão cheios de conceitos difíceis. E, tantas vezes, cheios de preconceitos que é preciso desmontar. “Noto essa preocupação em esclarecer. E não foge às questões, mesmo as que tocam em temas sensíveis e delicados. Sempre com uma enorme liberdade, sentido de justiça e de verdade”. João tanto escreve sobre a pedofilia na Igreja, como sobre a canonização dos pastorinhos, ou sobre temas teologicamente mais complexos, como o acesso aos sacramentos dos divorciados recasados. Isto para além dos temas que extravasam a religião.

Do tempo do pré-seminário, cerca de cinco anos, João recorda a amizade entre os colegas, as peças de teatro e até as filmagens com a câmara de vídeo que o pai lhe deu num Natal. “Até um filme de terror fizemos”. Destaca também a formação humana, que diz não ter encontrado em mais lado nenhum. Quando deixou estas atividades de fim de semana, prosseguiu a sua vida na paróquia e nos escuteiros, em Vieira de Leiria, onde era também um entusiasta. Mas da sua vida fazia também parte a rotina e a vivência do pai, João Gomes, jornalista da Agência Lusa. “A vida do meu pai era fascinante. Eu acompanhava-o nas conferências de imprensa e reportagens, via como ele vibrava com a profissão. Na altura, via-me a ser jornalista”, recorda o filho único, que ainda hoje mantém uma relação de grande proximidade e cumplicidade com o pai. Em casa, aprendeu a ter um olhar crítico e curioso sobre a realidade e ganhou o gosto às notícias, lendo jornais e assistindo aos telejornais. “Costumo dizer que nasci às 19.45 para dar tempo ao meu pai de ir ver o telejornal”.

Na hora de ir para a faculdade, João deixou a Vieira e foi estudar para a Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, cidade para onde o pai entretanto se mudara. O curso foi bom e intenso, afirma, destacando a prática que foi adquirindo nas reportagens, entrevistas e notícias que fazia para os trabalhos académicos, mas também na rádio da faculdade e no jornal online com o qual colaborava. “Aprendi a desenrascar-me”.

Tomás Gomes, colega da faculdade, recorda os tempos de curso, situados num passado ainda recente, sublinhando a determinação e seriedade do amigo, bem como a sua capacidade de trabalho. “É uma pessoa que gosta muito de debater e tem sempre ideias bem definidas. Bastam dois minutos para se perceber que tem uma personalidade muito vincada”, diz Tomás, recordando os míticos jantares entre os amigos aspirantes a jornalistas. No percurso académico, há um trabalho feito em conjunto com outros quatro colegas que ficou para a história, valendo-lhes o prémio Dignitas, nas categorias de Jornalismo Universitário. “Foi uma reportagem sobre crianças com trissomia 21, intitulada ‘Genética do amor’, em que acompanhamos um bebé e um adulto com esta doença”, conta Tomás, salientando, por isso, que o prémio de jornalismo que João agora recebeu não é o primeiro, mas já o segundo.

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Fotografia: Agência Ecclesia

A opção pelo jornalismo religioso foi algo muito claro para João Francisco desde o início do curso, o que não deixou de surpreender os colegas. Tomás diz que já tinha “o caminho bem delimitado, sabia bem o que queria, e para nós foi fascinante, pois ele queria uma área que nenhum de nós alguma vez escolheria”. A verdade é que, assim que acabou o curso, João facilmente arranjou um local para exercer esta vontade, recusando sempre qualquer intervenção ou ajuda do pai. “Soube que o Observador tinha um programa de estágios e inscrevi-me. Acabei o curso e na segunda feira fui para o jornal”.

Era junho de 2016. Na altura, estalara a polémica sobre os Comandos e, ainda estagiário, João Francisco foi incumbido pelo editor de “ligar a uns generais” para recolher reações ao tema que acabaria por se tornar num “especial”, a rubrica de maior destaque do jornal online. Uns meses mais tarde, antecipando a visita do Papa Francisco a Portugal, propôs várias ideias e reportagens sobre o tema e o jornal, apostado em investir no jornalismo religioso, acabaria por contratá-lo.

A aposta parece ter sido ganha. Em poucos meses, João entrevistou Emiliano Fittipaldi, o jornalista italiano, acusado de ter roubado documentos que mostravam a corrupção no Vaticano, a Irmã Guadalupe, a mediática freira que vive na Síria, e anunciou em primeira mão a canonização de Francisco e Jacinta Marto. Entre muitos outros trabalhos, nas mais variadas áreas.

“Representava melhor o diabo do que o anjo, ironia do destino” é o título da entrevista que lhe deu a consagração, feita ao bispo de Leiria-Fátima, e publicada poucos dias antes do Papa chegar a Portugal. Dessa entrevista de vida, João destacou algo curioso da vida de D. António Marto: o facto de ter sido um cético em relação a Fátima e à religiosidade popular e se ter tornado no bispo da diocese onde está aquele que é um dos santuários mais importantes do mundo.

A distinção, atribuída pelo Secretariado Nacional das Comunicações Sociais, órgão executivo da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, da Conferência Episcopal Portuguesa, em parceria com o Grupo Renascença Multimédia, foi decidida, por unanimidade, pelo juri. D. João Lavrador, presidente desta comissão episcopal, destaca o “profissionalismo do jornalista que aceita o desafio de trabalhar temas do humanismo cristão que confrontam a cultura atual”.

Para o premiado, a distinção foi uma agradável surpresa. Contudo, o jovem jornalista afirma que a área do jornalismo religioso não difere das demais, e assegura que a sua fé não interfere no seu trabalho, que faz de forma totalmente independente, abordando os temas que são jornalisticamente pertinentes. “Sou crente e católico mas sei que há coisas que estão mal na Igreja. Enquanto jornalista, o meu dever é escrutinar. A forma como faço o meu trabalho é independente de eu ir ou não à missa. Pode por em causa a minha relação com a Igreja, mas nunca a minha fé”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.