Passo férias numa terriola no sudoeste algarvio e, por estes dias, era notícia que, a partir de agora, já havia um gabinete de apoio às vítimas de violência doméstica. No mesmo dia, o Presidente da República promulgou o diploma que determina a formação obrigatória dos magistrados em matéria de direitos humanos e violência doméstica.
Apresar de nunca ter trabalhado especificamente na área, no meu percurso profissional já me cruzei com várias pessoas vítimas de violência doméstica e, pensando nelas, ambas as notícias me pareceram muito positivas.
Quando ouvi a notícia da abertura do gabinete ali naquele sítio onde passo férias, pensei logo nas pessoas que passarão a usufruir daquele serviço e de como a sua realidade é contrastante com a que vivemos ali naqueles dias.
A Violência Doméstica abarca todos os comportamentos considerados crime pela Lei Portuguesa que ocorram no espaço doméstico. A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), IPSS de referência na área, define a violência doméstica como qualquer ação ou omissão de natureza criminal que inflija sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos e/ou económicos. Associamos a violência doméstica principalmente à violência de um membro do casal contra o outro mas, também há violência doméstica nas relações entre pais e filhos.
A propósito destas notícias e, da também recente divulgação de que morreu a décima sétima mulher vítima de violência doméstica em Portugal este ano, estive à conversa com uma amiga que é gestora do Gabinete de Apoio à Vítima (GAV) da APAV de Santarém e gestora operacional pela Equipa Móvel de Apoio à Vítima (EMAV) da Lezíria do Tejo. Quer isto dizer que passa as suas semanas de trabalho a atender/apoiar e encaminhar vítimas de violência doméstica, tanto no gabinete em Santarém como nos pólos de atendimentos espalhados pelos vários concelhos desse distrito (divide esta tarefa com, apenas, dois colegas e falamos de dez municípios).
Para além desse trabalho de intervenção direta com as vítimas, tem ainda de gerir o Gabinete, a Equipa Móvel, os voluntários e o restante staff. É responsável por representar a APAV no distrito de Santarém, dinamiza ações de sensibilização e é formadora no Centro de Formação da APAV.
Desta conversa impressionou-me, naturalmente, a quantidade de tarefas que lhe são confiadas mas impressionou-me ainda mais a paixão com que fala do seu trabalho e a delicadeza e o respeito com que se refere às vítimas. Mais tarde confessava-me “gosto muito do que faço, não é apenas uma profissão é muito mais; é, de facto, uma missão, que nos exige olhar, ouvir e sentir o sofrimento do outro com amor e empatia.”
Reconheço este sentimento, trabalhar numa IPSS é uma oportunidade de nos darmos aos outros, é a possibilidade de, reconhecendo que temos mais recursos numa determinada área, ajudar quem não os tem a lidar de forma diferente com a situação. E assim, facilmente, nos entregamos a uma missão, fazendo do nosso trabalho um propósito de vida e não uma obrigação.
Mais tarde confessava-me “gosto muito do que faço, não é apenas uma profissão é muito mais; é, de facto, uma missão, que nos exige olhar, ouvir e sentir o sofrimento do outro com amor e empatia.”
Reconheço, igualmente, a dificuldade que é o dia-a-dia das IPSS porque se, por um lado, as necessidades das populações a quem servimos são muitas, por outro, os recursos das instituições são geralmente escassos. O trabalho de qualidade que se faz na maioria das IPSS acontece porque muitos dos técnicos que trabalham nestas instituições têm uma grande capacidade de adaptação a diferentes tarefas e contextos, de criatividade para encontrar respostas inovadoras e de centrarem a sua intervenção nas pessoas e não nos processos. Só com esta dedicação é possível apenas três técnicos atenderem e apoiarem as vítimas de violência doméstica de todo um distrito.
Voltando à conversa com a minha amiga. Perguntei-lhe se, este ano, os homicídios por violência doméstica tinham aumentado ou se apenas havia uma maior visibilidade deste fenómeno por parte dos órgãos de comunicação social. Referiu-me que o ano passado morreram 20 mulheres e já houve anos com números mais elevados. Mas, obviamente, não devia haver nem um. Ela acha que com a visibilidade que tem sido dada, a sociedade em geral está mais sensibilizada para esta questão e isso é, obviamente, um sinal positivo.
O Relatório Anual de 2018 da APAV refere que, nesse ano, foram apoiadas por esta associação 9344 vítimas e que a caracterização destas mantém a tendência dos anos anteriores. A maioria das vítimas são do sexo feminino, com idades entre os 25 e os 54 anos, casadas e profissionalmente ativas. Quanto aos agressores, a maioria são do sexo masculino, com idades entre os 35 e os 54 anos e a relação que têm ou tiveram com a vítima é maioritariamente uma relação amorosa (marido/mulher, companheiro/a, namorado/a).
O que é que leva um marido a bater numa mulher? Ou um filho num pai? Ou uma mulher a raptar um filho? Ou um pai a abusar de uma filha? Ou uma mulher a roubar o marido? Há com certeza muitos estudos científicos e dados estatísticos que apontam as várias causas mas parece-me que todas devem convergir numa só, a incapacidade de amar porque o amor, nas várias formas que pode ter, jamais gera violência.
O Relatório Anual de 2018 da APAV refere que, nesse ano, foram apoiadas por esta associação 9344 vítimas e que a caracterização destas mantém a tendência dos anos anteriores.
Chamou-me à atenção ainda do referido relatório que apenas em 47,8% das situações foi formalizada queixa/denúncia junto das entidades policiais. Nos casos que já acompanhei pude perceber a dificuldade que a vítima tem de sair daquela situação, e também aqui reconheço a falta de amor, amor próprio. Durante um ano dei formação em desenvolvimento pessoal a mulheres vítimas de violência e a baixa autoestima era uma característica comum que, naturalmente, era consequência da situação de violência que estavam ou tinham estado envolvidas.
Disse-me, ainda, a minha amiga que desde que a violência doméstica se tornou crime público que muito se avançou e fez nesta área, que Portugal tem uma excelente legislação na matéria, que é muito bom os magistrados virem a ter formação obrigatória sobre estes temas mas que, ainda, há muito a fazer a nível da prevenção.
E esta prevenção pode, e deve, começar por cada um de nós, gerando amor à nossa volta e educando os nossos filhos e/ou as crianças com quem lidamos para a capacidade de amar e respeitar o próximo, ensinando-lhes que os conflitos devem ser superados “não pela força, mas com o diálogo, o respeito, a busca do bem do outro, a misericórdia e o perdão”, como nos diz o Papa Francisco
Obrigada amiga Nhica pelo teu testemunho e pelo teu trabalho.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.