No meu tempo de criança, ser criança era significado do brincar. Brincar na rua, até o sol se pôr; encher a rua de gargalhadas e bicicletas, trepar as árvores para de lá ver o horizonte, colher bolotas, fazer de “barrocos” (pedras irregulares) castelos para mil e uma aventuras.
No meu tempo de criança, brincava-se na rua, cavalgava-se em cavalos imaginários e “caçadores e coelhos” corriam pelos campos de forma desalinhada.
No meu tempo de criança, o ar cheirava a liberdade, e muito do brincar acontecia por existir um sentimento de comunidade, uma identidade de lugar.
Houve um tempo em que o brincar perdeu força e o tempo dos pais transformou também o tempo dos filhos; o trabalho dos pais gradualmente começou a implicar a necessidade de garantir que as crianças, também elas, estivessem ocupadas. Segundo dados do EUROSTAT de 2018, a participação das mulheres portuguesas no mercado de trabalho era de 72,3%, acima da média europeia (EU-28, 68,4%).
Sabemos que nem todas as famílias têm as mesmas redes de suporte informal e o tempo para o brincar é substituído por um leque de atividades que as crianças precisam de frequentar enquanto os pais trabalham, mas que muitas vezes replicam, mais do que se devia, a rotina da escola. O tempo do brincar é, assim, tantas vezes substituído pela realização de um sem fim de TPC, em ATL’s.
O brincar propicia, deste modo, a aquisição de um conjunto de competências fundamentais para a aprendizagem: a estimulação da curiosidade e da exploração, a possibilidade de relacionar conceitos, ganhar habilidades e competências novas; desafiar-se.
Mas porque importa destacar o brincar? O brincar constituiu-se cada vez mais como um objeto de estudo e de análise, sendo considerado como um indicador de qualidade em contextos educativos formais e uma peça chave em contextos educativos não formais. A literatura tem estudado alguns componentes do próprio brincar, nomeadamente o playfulness, definido por alguns autores enquanto espontaneidade (física, social, cognitiva) e manifestação de prazer durante o brincar.
O estudo sistemático do brincar e dos seus componentes (como o playfulness) tem, assim, propiciado a emergência de um leque de pesquisas cada vez maior, que coloca em evidência os impactos positivos do brincar ao nível da criança – no seu desenvolvimento global (cognitivo, físico, emocional e social), ao nível do seu próprio desenvolvimento cerebral, segundo dados recentes das neurociências, na sua perceção de bem-estar, e num leque de competências fundamentais para a vida: as crianças aprendem a gerir conflitos, quando a brincadeira é social, a ser resilientes e a ser criativos. O brincar propicia, deste modo, a aquisição de um conjunto de competências fundamentais para a aprendizagem: a estimulação da curiosidade e da exploração, a possibilidade de relacionar conceitos, ganhar habilidades e competências novas; desafiar-se. A Fundação Lego reúne um conjunto de documentos que nos permitem conhecer os benefícios que a pesquisa destaca sobre o brincar.
O brincar tem sido também estudado enquanto promotor de uma parentalidade mais positiva, focando-se nos seus benefícios para a relação cuidador-criança. Os pais/cuidadores são os primeiros companheiros de brincadeira da criança, pelo que o brincar se reveste de uma importância extrema para o estabelecimento das primeiras relações positivas entre a criança e um adulto.
Apesar dos constrangimentos atuais que interromperam alguns projetos ligados ao brincar, merecem destaque dois que têm sido implementados em Portugal: o Brincar de Rua e os Grupos Aprender, Brincar, Crescer (GABC).
O Brincar de Rua (https://brincarderua.ludotempo.pt/) não é mais do que a criação de grupos comunitários do brincar, facilitados por adultos com conhecimento sobre o brincar e sobre o seu papel para a transformação de pessoas e comunidades.
Os Grupos Aprender, Brincar, Crescer (GABC ou Playgroups for Inclusion), consistiram num projeto piloto de índole nacional, com financiamento da Comissão Europeia (https://www.gruposabc.pt/), direcionado para crianças até aos 4 anos de idade e suas famílias/cuidadores, que não se encontravam a frequentar nenhuma creche ou jardim de infância. Realizado de forma bi-semanal, em períodos de 2 horas, os GABC contaram com um consórcio alargado (DGE, Fundação Calouste de Gulbenkian, ACM, Fundação Bissaya Barreto, Iscte, Universidade de Coimbra), que desenvolveu materiais, monitorizou a sua implementação e avaliou o seu impacto nas famílias participantes. A promoção de um clima de acolhimento, bem-estar, interação e de ludicidade foi uma das prioridades da equipa de intervenção. Globalmente, os impactos notados destacaram-se ao nível do desenvolvimento de algumas componentes cognitivas da criança, e os pais relataram ganhos na interação cuidador-criança (criação de momentos especiais com a criança) e na socialização da criança, possibilitando de acordo com alguns cuidadores uma melhor adaptação ao jardim de infância. Os GABC têm sido agora replicados um pouco por todo o país.
Mas neste tempo que vivemos, terá sido possível ganhar um espaço de brincadeira entre cuidadores e crianças? Entre teletrabalho e telescola, nem todas as famílias (re)encontraram um espaço de brincadeira. Ainda vamos a tempo? Claro que sim! O verão convida às brincadeiras de rua, à possibilidade de usufruir dos espaços exteriores com segurança; explorar a natureza, criar novas brincadeiras ao ar livre em família torna-se essencial! O brincar pode ser uma oportunidade para nos redescobrimos enquanto família, para potenciar ou reforçar relações positivas familiares, mas também para ajudar a criança a adquirir um conjunto de competências chave que lhe serão certamente úteis para as aprendizagens escolares que se avizinham. Boas brincadeiras!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.