Vamos (re)pensar a infância?

Áreas como a Educação, a Psicologia e a Sociologia da Infância alertam para a necessidade de repensar a infância e desconstruir a perspetiva da criança como ser inferior, quer nas experiências da infância, quer na forma como a escutamos.

“É uma criança, não se vai lembrar”; “é apenas uma criança, só mais tarde conseguirá perceber”. Será?

Estas são expressões que, por vezes, ouvimos no dia-a-dia e que podem ser reveladoras de uma desvalorização da infância e de uma perspetiva de criança como ser inferior. Contudo, áreas como a Educação, a Psicologia e a Sociologia da Infância alertam para a necessidade de repensar a infância e desconstruir essa perspetiva. Este artigo apela à reflexão sobre dois pontos que poderão ajudar a alcançar esse fim – a importância das experiências na infância e a valorização da voz das crianças.

Sobre o primeiro ponto, a investigação tem mostrado que experiências na infância têm impacto na pessoa que cada um se constroi ao longo da vida e nas interações que estabelece com os outros. Tome-se em conta o vínculo que, logo em bebés, é construído com os pais ou cuidadores. Quando estas figuras confortam o bebé, interagem, respondem às suas necessidades (não só comer e dormir, mas também ser amado), estão atentas e dão o melhor de si (ainda que com dúvidas), é possível construir uma base segura. No futuro, esta base segura instiga à exploração do mundo, ao aventurar-se por caminhos incertos e ao confiar no outro. Por outro lado, quando pais ou cuidadores respondem de modo inconsistente às necessidades do bebé e lhe transmitem elevada ansiedade e angústia, pode configurar-se uma base insegura. Esta base insegura pode restringir a capacidade de adaptação face a mudanças, gerar desconfiança nas relações interpessoais e dificuldades de compromisso. Pode ainda compor-se uma base desorganizada, quando pais ou cuidadores ignoram necessidades do bebé, não lhe proporcionam condições de sobrevivência ou interagem com violência física ou verbal. Um vínculo desorganizado tende, por isso, a associar-se a situações de negligência, maltrato e abuso, com repercussões negativas para a vida do indivíduo, na medida em que gera baixa autoestima, auto-culpabilização e acreditar que não se é merecedor de amor.

Esta base insegura pode restringir a capacidade de adaptação face a mudanças, gerar desconfiança nas relações interpessoais e dificuldades de compromisso.

Considere-se também como as regras e a resposta às necessidades emocionais enquanto crianças têm impacto ao longo da vida. Por um lado, pais ou cuidadores que equilibram a exigência face ao cumprimento de regras com a atenção ao estado emocional da criança e aos afetos nas dinâmicas familiares, ajudam a que, no futuro, se assuma responsabilidade pelas próprias escolhas e ações, se desenvolva autonomia e iniciativa no que se faz, seja em tempos de trabalho, seja em tempos recreativos e de lazer. Por outro lado, pais ou cuidadores que privilegiam ou as regras, ou a resposta a necessidades emocionais, podem contribuir para que, no futuro, a pessoa se sinta insegura e ansiosa quando necessita tomar decisões, se sinta tentada a desistir quando nem sempre consegue realizar algo à primeira, ou se feche em si própria (mesmo quando mais precisaria de apoio).

Por isso, podemos concluir que o que se passa na infância, não fica na infância. Pelo contrário, o que se passa na infância estabelece os pilares a partir dos quais interpretamos o mundo à nossa volta e nos desenvolvemos enquanto pessoas e cidadãos. Não significa que o que somos como adolescentes ou adultos fica pré-determinado na infância, pois aprendemos, relacionamo-nos com os outros e acumulamos experiências, positivas e negativas, até à nossa morte. Mas significa sim que a infância é um período central no nosso desenvolvimento e que, por isso, precisa ser reconhecida como tal a nível político, educativo e social. Significa que o papel de pais/cuidadores, educadores e professores, pediatras, enfermeiros, psicólogos, terapeutas da fala, entre outros profissionais que atuam na infância pode (e deve) ser encarado como difícil e exigente, mas também como gratificante e primordial. Envolve atualização contínua de conhecimentos e sensibilidade para ajustar práticas às particularidades de cada criança, escutá-la e permitir-lhe uma participação ativa nos seus tempos e espaços, de modo a nutrir o seu potencial e desenvolvimento pleno.

Por um lado, pais ou cuidadores que equilibram a exigência face ao cumprimento de regras com a atenção ao estado emocional da criança e aos afetos nas dinâmicas familiares, ajudam a que, no futuro, se assuma responsabilidade pelas próprias escolhas e ações.

Passemos ao segundo ponto de reflexão. Ainda que se tenda a considerar que são as crianças que aprendem com os adultos, será que o contrário não é válido também? Se calhar, a velocidade e a pressão do nosso quotidiano adulto podem ofuscar a nossa perceção sobre o que de belo há no mundo e levar-nos a dar por garantido o que assim não o é. Quantos de nós já ignoraram a espantosa variedade de cores das folhas das árvores no Outono? Quantos de nós já nem nos apercebemos de quão surpreendente e privilegiado é conseguir ler e comunicar com os outros a partir da escrita? Quantos de nós já nem tampouco pensa como será uma vida sem conseguir caminhar ou correr? E quantos de nós já nos permitimos ser “alertados” pela voz de crianças para estas maravilhas da vida?  São pequenas grandes coisas que podemos, como adultos, rapidamente esquecer, mas que a voz de uma criança em desenvolvimento nos pode ajudar a recordar e valorizar.

Podemos ainda considerar outro exemplo que ilustra a necessidade de atendermos à voz das crianças. Há relatos de algumas crianças que, aquando de situações de maltrato ou abuso, conquistaram forças inabaláveis para verbalmente partilhar o que se estava a passar. Contudo, a sua voz rapidamente foi reprimida com expressões adultas como “és uma criança, em quem achas que vão acreditar?”, ou “és uma criança, não sabes o que dizes”, gerando consequências gravíssimas para toda a vida da outrora criança, hoje adolescente ou adulto. Cabe-nos pensar como teria sido se a voz destas crianças tivesse sido escutada… Será que aprendemos com estes casos? Nos últimos anos, várias instituições têm procurado capacitar profissionais para identificar sinais de alerta e ativar mecanismos para prontamente remover as crianças da situação de maltrato ou abuso, assim como para criar condições propícias ao seu desenvolvimento seguro e saudável. Poderá ser um sinal de que estamos mais dispostos a aprender e a escutar verdadeiramente as crianças. É, por isso, necessário dar continuidade a estes esforços e alargá-los a toda a comunidade e a todos os cidadãos, que são também educadores.

Em suma, valorizar a voz da criança significa reconhecê-la como um ser de direito e por direito, que nos pode muito ajudar a construir novas representações sobre o mundo, a aprender mais, a intervir logo que preciso e a contribuir para uma sociedade mais justa. Para isso, devemos permitir-nos, enquanto adultos, escutar e aprender também com as crianças. Fica o repto.

Fotografia de Picsea – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.