Não foi decerto premeditado, mas achei particularmente simbólico que o anúncio de que as escolas não iriam ter mais atividades presenciais este ano letivo (com eventuais e controladas exceções para o 11.º e 12.º ano) tenha acontecido no início do Tríduo Pascal, exatamente quando as coisas se começam a complicar e se começa a ter a certeza que não vai ser fácil… Não foi nada de imprevisto – bem pelo contrário – mas quando sabemos que algo não agradável vai quase de certeza acontecer, no momento em que esse algo se anuncia e se torna inevitável, sofremos o impacto dessa inevitabilidade e precisamos de um tempo (três dias?) para encaixar e lidar com o assunto.
Da minha parte, que sou ator deste processo enquanto pai de duas crianças em idade escolar e enquanto colaborador numa organização não governamental que trabalha com e muito próximo das escolas, não vale a pena “dourar a pílula”: dois meses de aulas à distância vão ser duros e muitas vezes frustrantes para todas e todos os docentes para quem a educação é uma vocação; dois meses de aulas à distância vão ser confusos, áridos, solitários e pouco motivadores para tantos estudantes (já para não falar de inacessíveis para alguns); dois meses de aulas à distância vão ser exigentes e, por vezes, desesperantes para muitos encarregados de educação.
Vivemos uma espécie de situação-limite coletiva, que afeta a todas e todos neste mundo, sem exceção. E uma situação-limite é necessariamente um tempo de provação. E um tempo de provação é também um tempo de revelação e de verdade.
É verdade que também poderão ser uma oportunidade e um espaço de reencontro e renovação. Mas isso não torna necessariamente as coisas mais fáceis. Ainda mais no contexto em que tudo isto acontece.
São tempos verdadeiramente difíceis os que vivemos. E não apenas pela subjetividade da incerteza e da indefinição, que nos obriga a lidar com um improvável que temos dificuldade em acolher e enquadrar. São difíceis porque, objetivamente, muitas pessoas neste preciso momento, em todas as partes deste nosso mundo, sofrem, padecem e morrem não só pelo novo coronavírus, mas também pelos seus vários efeitos em todos os domínios das nossas vidas, começando pelas relações mais próximas.
De alguma forma, arriscaria dizer que vivemos tempos apocalípticos. Não no sentido de fim de mundo, mas no seu sentido de provação e revelação. Vivemos uma espécie de situação-limite coletiva, que afeta a todas e todos neste mundo, sem exceção. E uma situação-limite é necessariamente um tempo de provação. E um tempo de provação é também um tempo de revelação e de verdade.
De repente, muito do que antes era difuso e confuso torna-se mais claro – a nível individual, comunitário e societal. Claro que continuam ainda a subsistir muitos pontos e factos nebulosos, mas as reais fragilidades aparecem como feridas abertas, sem qualquer penso ou operação estética que as oculte ou dissimule, e as reais fortalezas revelam-se como farol, construtoras únicas de paz, alegria e esperança no meio da tribulação.
Sendo que é neste registo de tempos extra-ordinários, de provação e revelação, que me parece que podemos (mães, pais, estudantes, docentes, restantes pessoas ligadas aos processos educativos) encontrar o sentido e o rumo para o que aí vem.
Só a partir da (re)ativação e do exercício da nossa capacidade aprendente é que podemos transfigurar um tempo tão cheio de medos e incertezas num tempo de revelação e verdade. Só a partir da nossa capacidade de conseguirmos ler e aprender com aquilo que de novo e menos novo este tempo nos traz, é que conseguiremos encontrar força a partir da nossa fragilidade. E aí os processos educativos podem ser decisivos.
E se começássemos pela humildade e por aceitarmos que sabemos e saberemos sempre muito pouco, não só em relação ao mistério da vida, mas também sobre o que vai acontecer e nos propomos fazer?
Fica a eterna questão: como o fazer? Não tenho receitas mágicas (nem acredito nelas), pelo que posso apenas partilhar algumas das reflexões e dos questionamentos que têm surgido nas minhas reflexões pessoais e coletivas dos últimos tempos (sendo que aqui o coletivo não é apenas um pormenor, mas algo essencial a manter e cuidar).
E se começássemos pela humildade e por aceitarmos que sabemos e saberemos sempre muito pouco, não só em relação ao mistério da vida, mas também sobre o que vai acontecer e nos propomos fazer? E se, a partir daí, aproveitássemos esta situação-limite coletiva para nos deixarmos colocar em questão, dispondo-nos a responder com o máximo de verdade a algumas questões? Para ajudar a desbloquear, deixo algumas sugestões…
… em relação a mim própria/o:
– O que é que mais valorizo nestes tempos que vivemos?
– O que é que me ajuda a manter a esperança e o ânimo?
– Que fragilidades são agora mais visíveis? Que fortalezas me aguentam?
– O que é que descobri em mim que antes desconhecia?
– De que é que me esqueci e não me faz falta nenhuma?
– De que é que não me esqueci ainda, mas que na verdade não me faz falta?
– Quem é que se revelou próximo de mim? E quem não se revelou?
– De quem me fiz eu próximo? E de quem não me fiz próximo? Porquê?
… em relação ao mundo que nos rodeia:
– Que pessoas antes quase invisíveis é que fazem agora a diferença nesta situação?
– O que descobri sobre a minha vizinhança e o território próximo da minha casa?
– O que é que antes parecia impossível (ou diziam que o era) e, afinal, não o é?
– Quais as fragilidades deste nosso mundo que estão ainda mais à vista e que são mais urgentes de transformar?
– Como é que sonho essa transformação? Como é que ela poderá acontecer? Que papel poderei vir a ter? Que papel posso já começar a ter?
Fotografia de Annie Spratt – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.