Vai primeiro reconciliar-te…

Precisamos, por isso, de reafirmar a urgência da reconciliação, de fazer essa passagem da morte à vida, de reconstruir pontes, de curar as feridas, de pacientemente encetar o caminho que leva à paz.

Estamos no coração do tempo pascal, onde somos convidados a viver e a redescobrir esta vida nova que nos é oferecida em Cristo. Na verdade, ao celebrarmos a Páscoa do Senhor, a vitória da fragilidade do amor e da vida entregue sobre a morte e a ausência de sentido, é também a nossa ressurreição que celebramos. Assim no-lo recordava Paulo, na Carta aos Romanos, em plena Vigília Pascal, ao afirmar como, pelo batismo, somos definitivamente incorporados em Cristo, imersos no mistério permanente de morrermos para o egoísmo e para uma vida autocentrada, convertendo as nossas relações, os lugares que habitamos, aquilo que construímos, em sinais de vida nova, de uma humanidade fraterna e reconciliada. Assim no-lo relembram os textos destes domingos: na aparição do Ressuscitado, nesse primeiro dia da semana, os discípulos recebem o dom do Espírito. Jesus sopra sobre eles, tal como Deus fizera ao primeiro Homem, insuflando nele a vida. A nova criação que acontece em Cristo faz-se sob o signo da paz, da misericórdia, do perdão: os discípulos tornam-se portadores do dom de reconciliar, acolher, curar (cf. Jo. 20, 19-23).

As mensagens pascais dos vários líderes cristãos fazem eco do difícil contexto em que acontece esta Páscoa, repleto de conflitos, de guerra, de miséria e de morte. Faz-se sentir mais perto de nós o sangrento conflito na Ucrânia. Mas não cessam a chegada às praias e às fronteiras da Europa de tantos outros refugiados, os conflitos em tantos pontos de África e da Ásia, o extremar das tensões muitas vezes apoiado e legitimado por discursos e elementos religiosos.

Tenho-me lembrado, nestes dias, do testemunho do Ir. Roger, o fundador da comunidade ecuménica de Taizé, que foi profundamente tocado pelo exemplo da avó que, vivendo no Norte de França durante a I Guerra Mundial (1914-1918), se manteve em sua casa, aí acolhendo todos os que fugiam, velhos, crianças, mulheres prestes a dar à luz. Profundamente impressionada pelo facto de serem cristãos os que, de um lado e outro da barricada, se degladiavam, procurou desde logo testemunhar a possibilidade e a urgência da reconciliação. E começou por si mesma, procurando reconciliar as suas raízes evangélicas com a tradição católica, sem entrar em rutura com ninguém, sem ferir ninguém e sem renunciar ou perder o dom próprio da tradição em que fora educada.

Roger percebera, tal como a avó, que era preciso começar por si, exercitando-se interiormente para aprender a acolher sem julgar, a escutar, a aceitar o outro na sua inteireza e na sua fragilidade, a reconhecer o dom próprio que cada um traz.

O neto seguiu-lhe os passos. Em Agosto de 1940, quando uma nova Guerra afetava a Europa desde o ano anterior, o jovem Roger Schultz decide fixar-se numa pequena aldeia, a 10 quilómetros de Cluny, no Sul de França, iniciando uma experiência inicialmente solitária, de oração e reflexão, num grande despojamento. Amadurecia o seu projeto de organizar uma vida comunitária na qual a reconciliação, segundo o Evangelho, fosse uma realidade concretamente vivida, dia após dia. Ao mesmo tempo, acolhia clandestinamente em sua casa muitos refugiados, sobretudo judeus, dada a proximidade com a fronteira da zona ocupada pelas forças alemãs. Roger percebera, tal como a avó, que era preciso começar por si, exercitando-se interiormente para aprender a acolher sem julgar, a escutar, a aceitar o outro na sua inteireza e na sua fragilidade, a reconhecer o dom próprio que cada um traz. Sustentado por uma vida espiritual profunda, alicerçada na escuta e meditação da Palavra, na oração contemplativa e silenciosa, desde cedo percebeu que esta o obrigava a agir. Ao acolhimento dos refugiados seguiram-se os primeiros irmãos, o fundar de uma comunidade ecuménica, a participação na vida da Igreja (acompanhou de perto, em Roma, o decorrer do Concílio Vaticano II), a abertura da comunidade à aventura de acolher e escutar os jovens…

Hoje, sentimo-nos chocados perante um conflito que, de novo, opõe dois povos irmãos, cristãos contra cristãos. Na equação, mistura-se um outro elemento: o do poder. Contra ele alertara Jesus os seus discípulos, após os ter desconcertado com o seu gesto de lhes lavar os pés: “Os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas exercem a autoridade são chamados benfeitores. Convosco, não deve ser assim; o que for maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve” (Lc. 22, 25-26). A força das palavras seguia-se à força do gesto. Na raiz de tudo, está o serviço, a humilde consciência de que somos portadores de um tesouro que não é nosso, de uma luz que trazemos na nossa fragilidade, como vasos de barro. Traímos a nossa vocação quando o transformamos em poder e arma contra os outros. Jesus repetiu-o incessantemente, inclusive face às autoridades religiosas do seu tempo. A Igreja, as Igrejas, são também elas instrumentos, meios para um encontro e fermento, sacramento, fonte de humanidade e de fraternidade em ordem à construção de um mundo novo.

Reconhecer, aceitar e acolher este dom faz-nos também embaixadores e instrumentos, fermento e sinal de reconciliação.

Precisamos, por isso, de reafirmar a urgência da reconciliação, de fazer essa passagem da morte à vida, de reconstruir pontes, de curar as feridas, de pacientemente encetar o caminho que leva à paz. Na Páscoa, Cristo recorda-nos como n’Ele essa reconciliação já aconteceu: no seu corpo, morto e ressuscitado, se fez a ponte sobre o abismo que nos separava de Deus. N’Ele se diz a palavra última e definitiva de Deus, que é sempre uma palavra de vida, de amor, de paz. Reconhecer, aceitar e acolher este dom faz-nos também embaixadores e instrumentos, fermento e sinal de reconciliação. E, tal como bem percebeu o jovem Roger Schultz, essa reconciliação começa por nós. Implica o cultivo paciente e perseverante da capacidade de escutar antes de julgar, de acolher o outro e o seu dom, de perceber a diferença não como uma ameaça, mas como uma riqueza. Isso levar-nos-á a sermos empáticos, capazes de misericórdia, profundamente irmanados com os homens e mulheres nossos irmãos e com o próprio mundo que nos foi dado a cuidar para que seja uma casa de todos e para todos.

E não esperemos pelos outros. Como nos recorda Jesus no Evangelho, cabe a cada um de nós ir ao encontro do outro quando sabemos que ele tem alguma coisa contra nós. “Se tiveres a tua oferta sobre o altar… Vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão” (Mt. 5, 20-26). Não esperemos pelos outros ou pelo amanhã. É no agora que se joga a verdade do nosso testemunho e da nossa vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.