Vai de Férias? Leve Humor!

Similarmente ao corpo, a alma ou a mente precisa de descanso, carece de momentos de relaxamento. Ora, o remédio para uma mente cansada é o deleite resultante da produção e da prática de ditos e feitos proporcionadores de diversão ou jogos.

 

O remédio para uma mente cansada é o deleite resultante da produção e da prática de ditos e feitos proporcionadores de diversão ou jogos.

 

A relação do ser humano com o humor é no mínimo ambivalente. Os ditados populares portugueses ecoam bem esta ideia ao ensinarem que “rir é o melhor remédio” e que “muito riso, pouco siso”. Uma ambivalência patente na história da filosofia. Se, por um lado, Aristóteles considerava o ser humano o “único animal que ri”, por outro, alertava para o problema do humor envolver um sentimento de superioridade face à ‘feiura’ (física, moral, social, etc.) do outro. Nesse sentido, o riso seria a expressão do nosso sentimento de superioridade, consoante Thomas Hobbes defenderia séculos mais tarde. Rirmo-nos dos outros e não com os outros, eis a raiz da dificuldade moral do humor.

Uma dificuldade que explica uma certa ausência de estudos filosóficos sistemáticos sobre assunto até ao século XVII. Os filósofos e moralistas tratavam-no com um misto de cuidado e desprezo e, por isso, classicamente, tenderam a predominar apontamentos, mais ou menos soltos, nos quais as reflexões visavam principalmente alertar para os perigos do humor e para as cautelas a empregar no seu uso.

Platão é a este propósito exemplar. O riso, defende, envolve malícia, perca do controle pessoal e decaimento na nossa dimensão inferior. Deve ser evitado, pois há nele algo de animal e hostil. Mostram-se os dentes, lançam-se ruídos perturbadores, o corpo convulsiona-se e quando é violento, o riso causa em nós uma mudança igualmente violenta e capaz de nos afastar da racionalidade e do autoconhecimento. Logo, o humor é um vício. Porém apesar desta conclusão, Platão não o pretende rejeitar ou proibir liminarmente. As formas cómicas de diversão têm lugar na polis, mas deverão estar a cargo exclusivo dos estrangeiros e dos escravos. Os homens e as mulheres livres de Atenas devem abster-se de as aprender e de estarem demasiado familiarizados com elas de forma a não conspurcarem o processo social e o crescimento moral.

Deve ser evitado, pois há nele algo de animal e hostil. Mostram-se os dentes, lançam-se ruídos perturbadores, o corpo convulsiona-se e quando é violento, o riso causa em nós uma mudança igualmente violenta e capaz de nos afastar da racionalidade e do autoconhecimento. Logo, o humor é um vício.

Esta imagem tão depreciativa do humor poderá, nos dias de hoje, causar estranheza. No entanto, as razões que a suportam são inegáveis e justificativas dos cuidados assumidos. O humor dessacraliza, ridiculariza as autoridades e pode contribuir para a dissolução das crenças tidas por mais importantes na sociedade. Conforme afirmou Jean-Baptist de Santeul, “a rir corrigem-se os costumes”. O riso expressa o lado ligeiro da vida, questiona muitas das práticas, costumes e crenças vigentes. Quando expostas à luz do ridículo, por exemplo por meio de personagens-tipo (pense-se em Gil Vicente), determinadas classes sociais, profissões, personalidades e ações revelam-se patéticas e absurdas. Consequente, os malefícios do cinismo estão sempre à espreita. Quem vê tudo com ligeireza, banaliza tudo. Nada tem peso, nem valor, nem é merecedor do nosso compromisso.

O riso expressa o lado ligeiro da vida, questiona muitas das práticas, costumes e crenças vigentes.

Para lançar uma luz positiva sobre o humor, pode regressar-se à definição aristotélica do ser humano enquanto animal que ri. Johan Huizinga acolheu de tal modo esta ideia que viu nela um modo mais absoluto de distinguir o ser humano dos restantes animais. Aquele, mais do que um homo sapiens é um animal ridens, quer porque o riso aqui referido ser especificamente o humorístico, quer porque o riso não tem de envolver sempre uma sensação de superioridade face ao outro. Pode desempenhar a função de reação perante o absurdo ou incongruência da existência. Um tipo de humor (incongruente) popularizado por grupos como os Monty Python e os Gato Fedorento.

O humor tem um lado benigno. A psicologia, a biologia, as neurociências e as reflexões filosóficas contemporâneas congregam-se em torno dos benefícios do humor e do riso para o corpo, a mente e a sociedade. Eles contribuem para a diminuição do stress, da ansiedade e da tensão arterial. Diminuem as tensões sociais entre familiares, amigos e colegas, constituindo um autêntico lubrificante social acolhedor do diferente, do ambíguo e do incongruente. Promove, ainda, as virtudes intelectuais da abertura de espírito, do pensamento criativo e do pensamento crítico, tal como as virtudes morais da paciência, da tolerância para com as nossas limitações e da graciosidade.

Promove, ainda, as virtudes intelectuais da abertura de espírito, do pensamento criativo e do pensamento crítico, tal como as virtudes morais da paciência, da tolerância para com as nossas limitações e da graciosidade.

Tendo em conta este pano de fundo, proponho no restante texto defender o humor enquanto virtude com duas funções articuláveis: Descansar a mente e tornar-nos pessoas mais agradáveis e sociáveis. A este respeito, São Tomás de Aquino tem muito a ensinar-nos. É usualmente considerado o percursor mais importante da chamada teoria do jogo. Esta tem por tese a ideia de que o riso resulta da libertação do peso das atividades quotidianas que sobrecarregam a alma ou a mente.

Similarmente ao corpo, a alma ou a mente precisa de descanso, carece de momentos de relaxamento. Ora, o remédio para uma mente cansada é o deleite resultante da produção e da prática de ditos e feitos proporcionadores de diversão ou jogos. Estes assentam na categoria aristotélica da eutrapelia ou ‘boa mudança’, a capacidade de entrarmos num modo de jogo quando um acontecimento da nossa vida não requer uma ação imediata ou quando não há nada a fazer. Resta-nos apenas tentar desenvencilharmo-nos emocionalmente delas. Pense-se em São Lourenço a ser martirizado na grelha e a recomendar ao carrasco: “Vira-me, que já estou bem passado desse lado!” Ou, nas últimas palavras atribuídas a Oscar Wilde no seu leito de morte: “Este papel de parede é atroz. Um de nós tem que ir.”

A eutrapalia constitui a virtude dos jogos, ao “converter os ditos ou feitos em motivos de recreio” (Summa Teológica, II-II. Q168. A2). Uma das vantagens desta viragem reside em permitir transcender as respostas estritamente emocionais e focadas exclusivamente na situação concreta. Favorece-se, em vez disso, um modo de pensar e agir mais orientado pela razão. Contrariamente a Platão, São Tomás não vê no humor nada de intrinsecamente irracional ou imoral. Pelo contrário, condenar o humor é ir contra a razão. Não só porque a mente precisa de descanso, como também é irracional e imoral “mostrar-se pesado para com os outros, isto é, não lhes proporcionar nada de agradável e impedir o deleite dos outros” (Summa Teológica, II-II. Q168. A4). Quem peca por defeito, não profere nenhuma graça e torna-se uma pessoa dura ou rústica; quem o faz por excesso, vê em tudo uma paródia e converte-se num bufão. A estratégia para viver bem e ter um bom caracter é, portanto, a versatilidade.

Quem peca por defeito, não profere nenhuma graça e torna-se uma pessoa dura ou rústica; quem o faz por excesso, vê em tudo uma paródia e converte-se num bufão. A estratégia para viver bem e ter um bom caracter é, portanto, a versatilidade.

Assim, caro leitor, já sabe. Se quer ter uma mente descansada e tornar-se uma pessoa melhor, nestas férias deixe o humor entrar na sua vida. Lembre-se do homem que ao entrar na pizzaria disse: “corte-me a pizza em quatro pedaços, em vez dos habituais oito, pois estou de dieta.” Ou no caso de uma situação de saúde grave, desejo que se possa dizer de si: “apesar de todos os esforços dos melhores médicos da Europa, o paciente sobreviveu.”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.