A democracia é um sistema político que valoriza a liberdade. A liberdade individual, de cada um, ou a liberdade coletiva, a que está em jogo, por exemplo, quando se trata da independência de um país? Ambas.
Um notável pensador liberal, Isaiah Berlin, publicou em 1958 um livro sobre dois conceitos de liberdade – a defesa da minha área pessoal de liberdade contra a interferência de terceiros, nomeadamente do Estado; I. Berlin chamou-lhe liberdade negativa. E a liberdade de prosseguir publicamente determinados valores, nomeadamente através da política – I. Berlin designou-a de liberdade positiva.
Esta dicotomia já tinha sido esboçada por Benjamin Constant, na sua obra de 1815 “Liberdade dos antigos e liberdade dos modernos”. A liberdade dos antigos estaria associada ao ideal de participação na vida política, uma liberdade positiva. A liberdade moderna seria negativa, implicando a ausência de interferência na esfera pessoal, privada, de ação.
O individualismo liberal deu muita ênfase à liberdade negativa, de recusar interferências de outrem e sobretudo do Estado na esfera pessoal. Frequentemente essa ênfase na liberdade negativa levou a um certo desconhecimento da dimensão coletiva na formação da personalidade individual. Por exemplo, o grande economista e pensador Friedrich Hayek dizia não compreender a satisfação de certos povos que logravam obter a independência, ainda que passassem a viver pior do que quando eram colonizados. É uma falha típica do individualismo liberal.
Se houve exageros na valorização da liberdade negativa também ocorrem erros de sentido contrário. Ou seja, no sentido de tudo sacrificar a um ideal coletivo. Os totalitarismos do século XX reclamaram-se dessa liberdade positiva.
A democracia liberal, que há cem anos muita gente julgava ultrapassada e obsoleta, regressou em força depois da II guerra mundial. Hoje encontra-se de novo ameaçada pela deriva autoritária das democracias iliberais.
Contra a vacinação obrigatória
A pandemia da covid-19 levantou várias polémicas em torno das medidas de combate ao novo vírus, nomeadamente quanto à obrigatoriedade do uso de máscara e sobretudo quanto às vacinas.
A rejeição das vacinas entre nós, Portugal, teve felizmente escassa expressão, ao contrário do que aconteceu em países como a França. Os motivos para recusar ser vacinado são muito diversos. Vão desde teorias da conspiração até receios injustificados de ser inoculado.
Os defensores da vacinação alegaram que ser vacinado é um imperativo ético, pois contribui para fazer recuar a pandemia. Por isso alguns defenderam que o Estado tornasse obrigatória a vacina contra a covid-19, como foram obrigatórias outras vacinas que eliminaram várias doenças.
No entanto, o governo português rejeitou tornar obrigatória a vacina contra a covid-19. Fez bem, pois é saudável preservar uma área tão vasta quanto possível de autonomia privada nesta matéria, recusando usar a coação estatal, por muito que fossem absurdos os argumentos dos negacionistas.
Recentemente a revista “Études”, dos jesuítas franceses, publicou um artigo que vale a penas citar. Da autoria do professor universitário de filosofia Pierre Le Coz, esse artigo defende, no plano ético, a inconveniência de tornar obrigatória a tomada da vacina contra a covida19.
Do ponto vista de uma ética da responsabilidade, que toma em conta as previsíveis consequências das decisões políticas, a vacinação obrigatória poderia ter efeitos contraproducentes, reforçando os reflexos de rejeição por parte dos negacionistas. Por outras palavras, a vacinação obrigatória, imposta pelo poder político, poderia “consagrar o fracasso da confiança e o triunfo da coação”.
Acresce que não seria saudável uma medida sentida por muitos como uma desproporcionada violação do princípio da liberdade individual. “O voluntarismo estatal tem os seus limites”.
Daí que Pierre Le Coz defenda uma solução de compromisso entre o valor da liberdade pessoal e o valor da proteção de grupo: o “passe sanitário”, muito semelhante ao certificado de vacinação ou de um teste negativo que foi adoptado em Portugal.
A exibição desse passe, adoptado em França, condiciona o acesso a espetáculos e outros eventos, o que é uma forma de incentivo indireto a que as pessoas se vacinem – mas não é uma imposição estatal. Trata-se de uma via intermédia entre proteção de interesses individuais e proteção do interesse coletivo.
Não ao voto obrigatório
Nas recentes eleições autárquicas registou-se um nível de abstenção de 46,4 %. Esta percentagem está certamente influenciada pelo atraso na atualização dos cadernos eleitorais, retirando pessoas falecidas e outras que saíram do país. O que é agravado pelo recenseamento automático. Ou seja, a abstenção real é menor do que a oficialmente apresentada.
Mesmo assim, a tendência para níveis crescentes de abstenção é indiscutível e deve preocupar-nos. Alguns propõem tornar obrigatório o voto. É o que acontece em países como a Bélgica, o Luxemburgo, o Uruguai, a Austrália, o Brasil, etc. Em alguns desses países o cidadão não é obrigado a votar, mas deve comparecer na mesa de voto. E, se votar, poderá votar branco ou nulo.
Em 1971 o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deliberou que o voto obrigatório não é antidemocrático.
Mas não parece a solução ideal. Aliás, as leis que obrigam a votar têm vindo a ser pouco aplicadas. Há, de facto, dificuldades e relutância em penalizar quem não vota.
Mais importante, do mesmo modo que a democracia liberal não impõe modos de vida também parece uma violência obrigar a votar. Dir-se-á que é um dever ético a participação na “res publica”, votando. É certo, mas levar a votar por receio de eventuais sanções se o não fizer não é saudável e surge como uma escusada interferência estatal na esfera pessoal de cada um – é uma violação da “liberdade negativa”.
Claro que é benvindo tudo o que se puder fazer para facilitar o exercício do direito de voto às pessoas. Talvez não faltem muitos anos até cada um puder votar eletronicamente a partir de casa, evitando esperar horas numa fila na assembleia de voto. Mas voto obrigatório não, obrigado.
Fotografia: National Cancer Institute – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.