Uma pergunta

Valer para a eternidade não pode querer dizer marcar golos na liga da felicidade, ou pontos num ranking celestial; não corresponde a uma conquista, mas a um desejo de resposta. O amor de Deus já está dado todo, inteiro, para sempre.

Há várias diferenças importantes entre um nó de gravata bem dado e um nó de gravata trapalhão. Mas é legítimo que alguém, algum dia, ao espelho, fique parado a meio e se pergunte:

De que me serve isto para a eternidade?

Toda a gente sabe que há sítios a que se vai e sítios a que não se vai, frases que se repetem e coisas que não se dizem, pessoas que “sim senhor” e pessoas que “mais ou menos”. Há várias diferenças importantes entre uma jóia de família e uns brincos pindéricos. Mas é legítimo que alguém, algum dia, ao espelho, fique parada a meio e se pergunte:

De que me serve isto para a eternidade?

Diz-se que era esta pergunta que S. Luís Gonzaga fazia a si próprio constantemente e diante de uma tarefa, de um dia ou um trabalho. E explica-se que esta pergunta ainda hoje nos ajuda a nortear e a discernir, a pôr as coisas nos seus lugares. E é verdade. Mas dizer muita coisa sobre esta pergunta pode calar a sua ferocidade. E uma grande pergunta domesticada é sempre um espectáculo meio triste meio cómico, como uma onda falsa de piscina.

Gosto de imaginar que S. Luís pensava nisto não com o ar seráfico com que normalmente aparece representado, mas, pelo menos de vez em quando, com a garganta arranhada da urgência de quem anda realmente à procura de uma felicidade à prova de bala, com um coração inquieto. Como alguém que se surpreende a si próprio a meio de um nó de gravata, ou como alguém que um dia a pôr uns brincos os vê, de repente, como se fossem um gigante ponto de interrogação – e um daqueles que exige uma resposta, que não quer ficar apenas a pairar como uma bela manobra retórica.

As versões domesticadas desta pergunta podem facilmente pôr-nos a engendrar uma espécie de outras perguntinhas – na verdade, respostas –, eventualmente sofisticadas e elegantes, com que nos tentamos desculpar de não fazermos tarefas de que não gostamos de fazer, ou pelo menos de não as fazer logo. Vale mesmo a pena? Tem impacto? Estou a sentir? E é relativamente simples arranjar argumentos formalmente requintados que favoreçam o último episódio da Guerra dos Tronos sobre loiça por lavar. Isto quando (ou se) a consciência ainda nos obriga a esse trabalho de inventar desculpas, coisa que pode até deixar de acontecer…

Ter uma vocação é ser chamado. Pelo nome. A uma missão confiada apenas a si. Não é um evento místico reservado a futuros religiosos. Nem se descobre toda de uma vez, vai sendo revelada com contornos mais nítidos, passo a passo.

Mas é igualmente fácil decidir pela loiça movidos apenas por uma sensação vaga ou vazia de dever que já não vem de lado nenhum, que já nada tem que ver com amor, ou por uma ânsia cega de eliminar itens de uma “to do list”, ou por qualquer outra razão que até pode calar temporariamente a expectativa que temos sobre nós próprios, mas não consola a urgência do nosso coração. É a tentação moralizante que nos quer fazer esquecer que “o Evangelho não consiste em anunciar que os pecadores devem tornar-se bons, mas que Deus ama os pecadores”, como lembrava o Beato Miguel Sopocko, confessor e director espiritual de Santa Faustina.

É na presença deste amor que se mostra a verdadeira espessura da pergunta. Valer para a eternidade não pode querer dizer marcar golos na liga da felicidade, ou pontos num ranking celestial; não corresponde a uma conquista, mas a um desejo de resposta. O amor de Deus já está dado todo, inteiro, para sempre. A pergunta é, portanto, sobre onde mergulhar. Quem tem a experiência de um mar fresco, cheio de força, mas que, mais que assustar, fascina e convida, percebe o que quero dizer; aquele mar que atrai sem deixar de mostrar o seu tamanho estupendo, que nos devolve a nossa caricata medidazinha e ao mesmo tempo conta com a grandiosidade do nosso desejo. Nem todas as ocasiões são boas para mergulhar num mar assim. Nem todas as ondas são para nós. Há que ver bem para saber quando entrar. Quando, porém, se descobre esse ponto, até se pode ir a correr.

A aberta que cada um encontra para mergulhar é aquilo a que se costuma chamar vocação – a forma particular de responder ao amor total e incondicional de Deus por si, de entrar nele, a resposta que se quer dar ao ouvir o nosso nome chamado com esse amor. Ter uma vocação é ser chamado. Pelo nome. A uma missão confiada apenas a si. Não é um evento místico reservado a futuros religiosos. Nem se descobre toda de uma vez, vai sendo revelada com contornos mais nítidos, passo a passo. Cada um é chamado a mergulhar na onda que foi criada para si desde toda a eternidade. Aprender a calar para ouvir pode não ser fácil e requer a coragem de esperar no silêncio, a vontade de andar mesmo quando doem as pernas, o ânimo para arriscar com confiança, a certeza de que se pode sempre tentar de novo, e a permanente recordação de que, afinal, para se ser feliz à prova de bala, é preciso libertar-se do desejo de se ser a personagem principal da própria vida. Nem sempre o que mais apetece valerá para a eternidade. E, às vezes é possível que seja mesmo o que não apetece.

Agora, se a pergunta honesta que fizermos for esta, se nos deixarmos ter fôlego para querer o que infinitamente desejamos, o jogo muda. Custa estudar matemática, mas custa mais perder a vida eterna. Custa acordar cedo, fintar o trânsito e trabalhar todos os dias, mas custa mais viver uma vida que é só a segunda melhor hipótese que teríamos. Ou a terceira.

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.