“Agradecemos o interesse demonstrado em trabalhar connosco mas, infelizmente, não será aceite por usar hijab. Obrigada pela sua compreensão.”
Uma das pessoas que mais marcou a minha vida for a Meryem, uma amiga que fiz quando decidi partir à descoberta da Tunísia. Abriu-me as portas de sua casa, partilhou comigo o seu quarto e levou-me a conhecer o seu país, entre mesquitas e óptima comida, histórias e uma alegria imensa, e ficou minha amiga para sempre.
Uma rapariga como eu, da mesma idade e cheia de curiosidade por este nosso mundo. Na altura, ambas estudávamos e trabalhávamos, tínhamos os nossos sonhos para o nosso futuro. Contudo, entendi o quão mais fácil era ver os meus realizados.
Debaixo do hijab desta minha amiga escondem-se sonhos, esconde-se uma personalidade forte, e escondem-se também desafios inimagináveis para mim, que vivo do outro lado do mediterrâneo. O sonho da sua família era casá-la com o seu primo que vive na Alemanha, mas esse não era o seu sonho, queria antes casar com alguém de quem gostasse e queria poder trabalhar. Preferia não ter de seguir o destino das suas amigas e da sua família. Parece algo normal para nós, não é? A sua luta diária, a sua vontade de conhecer estrangeiros e de viajar, mesmo com (muito) poucos recursos, e rodeada de amigos que não a percebem, é hoje uma inspiração para mim. Ainda que me possa fazer confusão os sonhos que a família possa ter para si, sei que o fazem por bem, por quererem o melhor para ela, e esta família ficará para sempre guardada no meu coração, por me terem recebido tão bem e terem tratado de mim como uma filha.
Passei uma Páscoa diferente, junto da Meryem e da sua família. Foi uma Páscoa especial. A Meryem decidiu levar-me até à igreja, onde nunca tinha entrado. Disse-lhe que seria sempre aqui bem-vinda e expliquei-lhe mais sobre o cristianismo – obviamente que as nossas religiões se tocam em diversos aspectos, pelo que foi muito interessante explorar essas questões e desmistificar outras. Foi tão especial estar acompanhada no “meu” lugar de culto que não esperava por mais uma surpresa. Mas, seguidamente, a Meryem convidou-me a ir consigo à mesquita. O momento não poderia ter sido mais especial.
Chegámos a Cairuão, à mais antiga mesquita do Norte de África, um dos locais mais sagrados dos muçulmanos, e onde entrámos ambas para rezar. Rezámos por mais amizades como estas, por menos muros, por mais pontes, pela compreensão, pela aceitação e pela paz.
Chegámos a Cairuão, à mais antiga mesquita do Norte de África, um dos locais mais sagrados dos muçulmanos, e onde entrámos ambas para rezar. Rezámos por mais amizades como estas, por menos muros, por mais pontes, pela compreensão, pela aceitação e pela paz.
A Meryem é assim daquelas forças da natureza que luta até ao fim, que tem valores e ideais bem definidos e que sonha com a paz no mundo. O seu sonho, para além de criar a sua própria família, é de trabalhar com refugiados na Turquia. Estudou a língua precisamente para poder embarcar nessa viagem, com o seu espírito de missão bem presente. Infelizmente, ainda que com 23 anos, precisa da autorização por escrito do pai para poder sair do país.
Agora que já conhecem um pouco melhor a minha querida amiga, volto à afirmação inicial. Quando recebi esta mensagem que me enviou, não quis acreditar. Que injustiça pensei. “E se fosse comigo? Se não me deixassem
trabalhar por ser cristã e andar com uma cruz aos pescoço no meu país, onde é essa a religião que predomina?”
E infelizmente não acontece apenas no mundo laboral com frequência, como me conta a Meryem. Infelizmente, acontece todos os dias na rua, pessoas que, como nós, sonham em poder viver num mundo pacífico, são confundidas com aqueles que se apropriaram do nome de uma religião, fazem-se passar por religiosos, e são uma minoria no mundo, ainda que, pelas notícias que nos chegam, pareçam ser a maioria.
E se fosse comigo, não poder passear na rua sem que tivessem medo de mim, sem que me vissem como uma terrorista, quando eu luto pela paz? Se alguém tivesse usado a minha religião de amor para fazer a guerra?
E se fosse comigo, não poder passear na rua sem que tivessem medo de mim, sem que me vissem como uma terrorista, quando eu luto pela paz? Se alguém tivesse usado a minha religião de amor para fazer a guerra?
As recordações como ir à igreja e à mesquita rezar em conjunto, bem como abrir-me o Corão e explicar-me as passagens, ou comermos em família todos dos mesmos pratos com um pedaço de pão na mão, ou cozinharem e servirem chá a toda a hora, ou ajudarem-me com a língua e estar sempre acompanhada farão parte de uma das melhores experiências pascais de sempre.
No fim deste périplo, para além dos muitos presentes que me deu, aquele com mais significado foi um hijab verde seu, lindo – “é para quando fores a outros países muçulmanos”. Na verdade, irei utilizá-lo nessa ocasião, mas também hoje o uso na nossa Europa Ocidental, não como hijab, mas como echarpe, e essencialmente como símbolo de uma amizade que nasceu da união, compaixão e respeito. Juntas pedimos pela paz e justiça no nosso mundo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.