A nova encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e amizade social tem uma frase belíssima que me vou permitir descontextualizar:
«Os heróis do futuro serão aqueles que souberem quebrar esta lógica morbosa e, ultrapassando as conveniências pessoais, decidam sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade. (202)»
Não pretendo sugerir que se trata da frase mais importante, nem sequer propô-la como chave de leitura do resto do texto da encíclica, que nem me parece que seja. Mas prendeu-me sobretudo esta ideia de “palavra densa de verdade”, tão antagónica com a forma superficial como se atiram verdadezinhas superficiais, meias verdades, ou verdades que nem o chegam a ser, à cara de outras pessoas, normalmente à cara de pessoas com quem não se concorda.
Este é um fenómeno especialmente visível nas redes sociais, como também lembra o Papa. As relações virtuais são marcadas por uma espécie particular de proximidade – que nos mantém ao corrente daquilo que escolhemos mostrar das nossas vidas e ideias (mais ou menos verdadeiro, mais ou menos representativo…) mas que despersonaliza as conversas, pondo-nos atrás de perfis, imagens, feeds, que às vezes não são mais que jogos de espelhos.
Verdade e diálogo não se opõem, são antes mutuamente necessários. Sem diálogo franco, honesto, limpo, corremos o risco de não nos libertarmos do nosso próprio olhar sobre as coisas, que é falível. Sem esta palavra densa de verdade, ou pelo menos sem um sério desejo dela, o diálogo não passará de uma troca fútil de impressões, ou de gritos.
Mas prendeu-me sobretudo esta ideia de “palavra densa de verdade”, tão antagónica com a forma superficial como se atiram verdadezinhas superficiais, meias verdades, ou verdades que nem o chegam a ser, à cara de outras pessoas, normalmente à cara de pessoas com quem não se concorda.
Por outro lado, talvez este nosso mundo acelerado precise, além de diálogo, de silêncio. Do silêncio que permite ouvir sem responder logo, mas também do silêncio que permite ponderar, imaginar, contemplar, ajuizar. Do silêncio que permite não nos ouvirmos só a nós próprios. E hoje, para haver silêncio, é preciso um exercício de recusa que pode parecer absolutamente excêntrico. Há conversas que simplesmente não vale a pena ter. Não por falta de consideração, mas, justamente, por amor a essa “palavra densa de verdade”, que pode não ser possível de dizer, ou de reconhecer, em determinados momentos e circunstâncias. Há alturas em que simplesmente não precisamos do telefone, e podemos afastar-nos dos seus toques, lembretes e exigências. Há idades em que ter a internet no bolso faz simplesmente pior do que melhor a um desenvolvimento saudável. Nem sempre a posição justa em relação a tudo é de equilíbrio. Por vezes, a liberdade exige simplesmente uma renúncia ou o silêncio. Aliás, o texto do Papa sublinha isso também, quando fala da “informação sem sabedoria” (47-50) e volta a referir, como já tem feito, o lado negro desta dinâmica potenciada pela tecnologia.
Do silêncio que permite ouvir sem responder logo, mas também do silêncio que permite ponderar, imaginar, contemplar, ajuizar.
Ironicamente, o momento presente tem revelado uma outra face deste ruído permanente que é que sobre um tema particular – e um tema em que a nossa enorme fragilidade e falta de controlo ficaram expostas de repente e à nossa revelia – pareça existir apenas um enorme e entediante consenso, que pode estar tão afastado do diálogo sério como a habitual e estridente troca de gritarias. Também não prestamos um grande serviço uns aos outros quando nos demitimos de interrogar, questionar, criticar, corrigir ou propor alternativas. É também daí que vem a “densidade” de que fala o Papa, que ultrapassa as “conveniências pessoais” mesmo quando elas ditem uma confortável posição de isolamento dentro de uma bolha de anonimidade passiva.
Conversar seriamente, honestamente, por amor. Santo Inácio dizia, e com toda a razão, que “o amor se põe mais nas obras que nas palavras”, mas hoje, talvez seja preciso recomeçarmos por esta “palavra densa de verdade” que devemos a nós próprios e uns aos outros.
Fotografia de Giancarlo Corti – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.