Vivemos num tempo em que a cozinha está na moda, com propostas gourmet de Chefs que nos entretêm e aliciam, ao mesmo tempo que se fala cada vez mais de uma alimentação saudável e cresce a preocupação com as dietas alimentares, quer por motivos de saúde pública, quer por motivações pessoais. Todos gostamos de comer, de estar à mesa. Todos preferimos estar em forma e com uma boa linha. Mas esta está longe de ser uma realidade para todos. Temos consciência de que as nossas opções alimentares podem contribuir para que todos tenham direito a uma alimentação adequada, assente em sistemas alimentares mais justos?
Celebramos estes dias uma grande Mesa, celebramos a Páscoa, acontecimento central para os cristãos, em que Jesus se dá como alimento, para que todos tenham vida. Entrega-se por todos, por toda a Humanidade. Na última ceia com os seus discípulos, parte o pão que reparte por todos, e pede-nos que assim como Ele o fez, o façamos nós também. Esta Mesa que é para todos, continua, no entanto, a excluir muitos, demasiados… Num mundo em que a tecnologia e a informação se ultrapassam todos os dias, continua o flagelo absurdo e inaceitável da fome.
Sabemos que o planeta hoje produz alimentos suficientes para todos e, no entanto, cerca de mil milhões de seres humanos, um pouco por todo o mundo, passam fome e sofrem de subnutrição, ao mesmo tempo que se calcula que 30% da produção alimentar seja desperdiçada, não chegando a ser consumida.
Segundo o relatório 2017 da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) sobre segurança alimentar e nutrição, múltiplas formas de malnutrição coexistem, com países que experimentam simultaneamente altas taxas de desnutrição infantil e obesidade adulta. O excesso de peso e a obesidade infantil estão a aumentar na maioria das regiões do mundo e em todas as regiões no caso dos adultos. Uma alimentação deficitária tem como consequência uma cadeia de desequilíbrios, nomeadamente ao nível da saúde e da educação.
Paradoxalmente, segundo a mesma organização, quem mais vive situações de vulnerabilidade são os pequenos produtores de alimentos e suas famílias, responsáveis por cerca de 80% dos alimentos produzidos no mundo, uma realidade que revela causas estruturais de injustiça e exclusão social e territorial.
Como alterar esta realidade? «Dai pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão». Será que temos consciência de que podemos pôr em prática esta oração? Na verdade, todos podemos contribuir, a nível individual e coletivo, para que a Mesa seja para todos, através de sistemas alimentares mais justos e sustentáveis.
Como consumidores, podemos procurar saber a origem do que comemos e de toda a história de recursos e pessoas que está por detrás do nosso prato todos os dias, várias vezes por dia (para os que têm essa possibilidade), podendo optar sempre que possível por alimentos provenientes de produção local, com modos de produção mais sustentáveis. Existem cada vez mais alternativas que nos permitem contribuir para redes de produção e economia local (a Herdade Freixo do Meio é um exemplo em Portugal de CSA – community suported agriculture), estabelecendo compromissos solidários entre produtores e consumidores. Estas opções contribuem para uma nova relação e nova vida nos territórios rurais, em ligação com os centros urbanos. Para além de garantirem uma alimentação mais saudável (com base em práticas agrícolas mais ecológicas), contribuem para uma rede de relações de sustentabilidade e resiliência ao nível local.
Mas a complexidade e a dimensão do desafio de garantir uma alimentação sustentável para todos exige uma transformação estrutural profunda de políticas públicas e de novos modelos de desenvolvimento e de gestão ao nível do setor privado, com uma visão integrada de toda a cadeia, da produção ao consumo. As mudanças necessárias precisam de processos de construção conjunta centrados no bem comum, para lá dos resultados parciais de curto prazo que disfarçam as feridas e só beneficiam alguns. Na verdade, muitas vezes as políticas públicas parecem estruturar-se em resposta a lobbies setoriais bem organizados, negligenciando o seu verdadeiro sentido de representar todas as realidades de um país ou região, promovendo a inclusão e a coesão social. Por outro lado, o emagrecimento do papel do Estado, substituído pela privatização de muitos setores e serviços, tem condicionado o acesso universal e adequado a bens comuns (água, informação, investigação, conhecimento), subjugados pela orientação do mercado e a maximização do lucro.
No que se refere à produção, em Portugal, a agricultura de pequena e muito pequena escala, representa mais de 90% das explorações portuguesas, uma realidade que tem sido considerada marginal e negligenciada nas orientações políticas das últimas décadas, focadas sobretudo na maximização da produção, negligenciando os bens públicos gerados pelos pequenos agricultores: conservação da paisagem, fixação de carbono, biodiversidade, variedades autóctones, cultura, saberes e tradições. Os pequenos agricultores foram sendo vistos como um problema e não como uma riqueza. O abandono rural que marca vastos territórios do nosso país surge como consequência desta realidade.
Ao nível da distribuição e comercialização, em Portugal, tal como a nível mundial, existe uma grande concentração da cadeia de abastecimento alimentar (em Portugal cinco empresas concentram 2/3 distribuição de alimentos). Para além de terem uma responsabilidade social e ambiental acrescidas (que nem sempre exercem), estes são agentes que terão necessariamente de transformar os seus modelos de negócio e de intervenção, em articulação com políticas adequadas.
Por fim, é urgente não enveredar por falsas soluções. Se é certo que necessitamos de processos mais inteligentes e eficientes na utilização dos recursos, quer na produção (com uma agricultura inteligente face ao clima), quer no processamento e distribuição, não se pode absolutizar a tecnologia, a ciência ou o mercado como soluções para os desafios que enfrentamos. São ferramentas preciosas que precisamos de administrar com sabedoria, com vista ao bem-estar de todos e do planeta. Não podemos igualmente pensar que outros setores resolverão os problemas, nomeadamente, no caso de Portugal, o turismo. Proliferam pelo nosso país feiras medievais, semanas gastronómicas com receitas conventuais e mercados revivalistas, que em si são um bem, mas com pés de barro se não se enquadrarem numa cadeia integrada de suporte a montante. Não faltam receitas regionais confecionadas com ingredientes oriundos de milhares de quilómetros de distância, quando podiam ter por detrás produções locais, sinónimo de maior sustentabilidade social, económica e ambiental. Políticas e estratégias locais mais integradas de turismo e desenvolvimento rural são sem dúvida pertinentes e necessárias, para novos caminhos de coesão social e territorial.
O tempo é necessariamente de Esperança. Lentamente vão surgindo testemunhos de mudança, quer por parte da sociedade civil, quer por parte das políticas, que manifestam uma nova reverência pela vida, pela dignidade humana, pelas nossas origens e pelo ambiente, redescobrindo o valor das comunidades e alternativas locais num mundo global. Sinais de Páscoa que urge potenciar, não deixando passar as oportunidades que nos são dadas de descobrir novas formas de cuidar da nossa Casa Comum, de cuidarmos uns dos outros, da terra, das futuras gerações. Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo. Que esta passagem do profeta Ezequiel lida na grande noite da Páscoa, em que os cristãos fazem memória e celebram a libertação de todas as escravidões, opressões e injustiças, possa iluminar os novos caminhos que precisamos de trilhar, na construção de um mundo mais justo, em que todos tenham lugar à Mesa.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.