A encíclica do Papa Francisco, «Fratelli Tutti», está a conhecer uma receção extraordinariamente alargada. Num tempo em que a nova «liturgia das horas» consiste na recitação do número de contágios diários, este texto foi recebido como uma palavra iluminadora, muito para além da gramática institucional – recorde-se que, formalmente, uma encíclica é uma espécie de «carta circular» enviada pelo Bispo de Roma aos outros Bispos, sobre problemas relativos à Igreja universal. Alguns destes textos foram muito além das fronteiras eclesiais. É, certamente, este o horizonte em que se inscreve esta carta encíclica.
Com frequência, o discurso que nasce do interior das comunidades de pertença religiosa visa, em primeira linha, afirmar publicamente um determinado particularismo. Esta encíclica não é uma reivindicação de direitos da Igreja católica romana, nem um exercício de condenação moral, a partir de uma particular tradição religiosa. A partir de uma tradição, vivida como modo de habitar e transformar o mundo, enuncia-se uma palavra legível por todos. Esta tradução da mensagem cristã num universal partilhável, mas enraizado na memória viva de uma comunidade, parece ser um eixo central da solicitude pastoral do Papa Francisco. A prioridade dada a uma cultura da fraternidade responde ao grito das vulnerabilidades e esperanças que vivemos, no contexto de múltiplas contemporaneidades. Mas essa resposta nasce de um solo arável, bem enraizado no substrato do evangelho cristão.
Vale a pena recordar que, num contexto difícil, a primeira geração cristã enfrentava um dilema: ir para o «mundo» ou separar-se dele. O cristianismo é contemporâneo de tendências religiosas que se automarginalizavam e procuravam, no «deserto», a morada onde renunciavam ao mundo como o conheciam. Essa condição de separação era vivida como uma alternativa ou como uma antecipação de um mundo que estaria a chegar. Pedro e Paulo fizeram outra opção – mergulhar no «mundo civil. Quando observamos, por exemplo, os itinerários de evangelização de Paulo e dos seus missionários, descobrimos os cristãos nos centros da romanidade: Antioquia da Pisídia e Filipos eram colónias militares e nós rodoviários; Antioquia, Salamina de Chipre, Tessalónica, Éfeso, eram capitais provinciais. Eram centros que criavam oportunidades para a disseminação da mensagem cristã, sobretudo através da rede de contactos pessoais – nas cartas de Paulo encontramos referências ao valor da hospitalidade e acolhimento, atitudes que esta itinerância exigia (cf. 1Ts 1, 8-9).
Sabemos que o Império Romano se distinguiu pelas suas opções estratégicas quanto à comunicação: a comunicação viária, mas também a língua. Paulo interiorizou muito bem estas opções no plano do seu modelo de evangelização. Ele sabia que para difundir a mensagem cristã necessitava de usar a língua comum (como o Império fazia), o grego (no seu uso corrente). Assim, o evangelho cristão não se refugia numa língua sagrada, numa linguagem esotérica inacessível. Procura antes traduzir-se numa língua que lhe permita chegar ao maior número.
Paulo constituiu o núcleo das suas Igrejas a partir do agregado familiar (o «oikos», a casa). Podemos tomar como exemplo, o «oikos» de Áquila, um artesão têxtil que se deslocava ao ritmo dos grandes acontecimentos periódicas, acompanhando a concentração de populações em determinadas cidades, difundindo, dessa forma, a mensagem cristã. O agregado familiar antigo, o «oikos», é um lugar de reunião, um centro de atividades e um lugar de hospitalidade. Numa sociedade fundamentalmente inigualitária, a casa é o lugar das solidariedades mais básicas, onde era possível atenuar as diferenças de estatuto – o escravo, a jovem desposada, etc. Na Epístola a Filémon, podemos observar que Paulo pensava a transformação destas relações a partir do interior, segundo uma nova condição, a comunhão em Cristo, sem contestar explicitamente a ordem estabelecida. A casa cristã vive num regime de dissensão em relação à cidade, mas sem nunca a abandonar, integrando os elos mais frágeis da sociedade – não espanta, pois, que as acusações romanas venham a observar, depreciativamente, que o cristianismo era uma coisa de jovens, mulheres e escravos.
A cultura urbana greco-romana era constituída por um tecido de comunidades diferentes, em permanente transação. A paz social dependia, no quadro da política romana, de uma abertura intercomunitária, em que se toleram as idiossincrasias, desde que o respeito pela ordem e a soberania romanas não fossem perturbadas. Paulo, na sua tripla pertença (judeu, cidadão de Tarso e cidadão romano), segundo a tradição, é um bom exemplo dos resultados deste cosmopolitismo. As comunidades paulinas vivem, também elas, nas diferentes escalas, a vida social do seu tempo: a casa, a cidade, a província, o Império romano, o universo do espaço habitado. As Igrejas de Paulo estão neste trajeto entre a comunidade local e a abertura à experiência universal. Nesta pregação paulina, a salvação é para todo o espaço habitado, ou seja, é literalmente ecuménica. A vida cristã, compreendida como incorporação em Cristo, trazia consigo a possibilidade de reconstrução do mundo superando os muros étnicos existentes. Nos primeiros séculos do cristianismo, os termos «adelphotês»/«fraternitas» (fraternidade) são usados, de forma privilegiada, para identificar as comunidades eclesiais. Na leitura desta carta do Papa Francisco, as comunidades podem redescobrir-se nesse atributo fundamental, Igreja-fraternidade, sinalizando a possibilidade de reconstrução dos laços que nos tornam humanos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.