24 de maio de 2015. Esta é a data de publicação da segunda carta encíclica de Francisco. Recordo-me bem desse momento, pois estava imerso na redação dos documentos necessários à minha agregação em sociologia. Desde então, esta carta do Papa não mais deixou de fazer parte dos textos de referência e leitura obrigatória para os meus alunos de sociologia do desenvolvimento. Apesar do espanto que possa gerar – certo dia, uma aluna que passou pelas minhas aulas disse-me que “achou estranho, um livro religioso numa cadeira de sociologia” –, mantive a carta encíclica na bibliografia da unidade curricular, certo da relevância dos argumentos para a compreensão sociológica das questões relacionadas com a crise social e ambiental em que estamos mergulhados. Como sublinha Michael Lӧwy, a Laudato Si’ “é uma contribuição de extraordinária importância para o desenvolvimento, em escala planetária, de uma consciência ecológica. Para o Papa Francisco, os desastres ecológicos e a mudança climática não são simplesmente o resultado de comportamentos individuais, mas dos atuais modelos de produção e de consumo.” (nota 1)
Dez anos decorridos, a Laudato Si’ não perdeu atualidade, constituindo-se como um documento marcante do pontificado de Francisco. Contributo notável para a compreensão e o debate das questões ecológicas, não é, de modo algum, uma carta encíclica inesperada. Sobretudo para os que se interessam pelas alterações climáticas, a degradação ambiental e a destruição geral do planeta, quer dizer, de vida humana e não humana, ela é coerente com o pensamento e a prática de Francisco desde que assumiu a tarefa de governar em Roma a Igreja Católica. Aquando da sua eleição, em março de 2013, ao escolher Francisco para nome como Papa, o cardeal Jorge Bergoglio deu um sinal forte do que pretendia fazer. Numa das primeiras páginas da Laudato Si’, lembra o motivo da escolha do nome do santo de Assis: “Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos. […] Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior.” (nota 2)
Esta inquietação com os pobres e a natureza está presente na exortação apostólica Evangelii Gaudium, de novembro de 2013. Nela Francisco convoca a nossa atenção para os problemas produzidos pelo sistema que organizou a “economia que mata”: “Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.” Com a Laudato Si’, Francisco convida-nos a “ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”. Podendo ser lida e discutida a partir de distintas posições teológicas, teóricas e políticas, ela provocou a mais viva impressão nos que se interessam pelas questões ambientais. Mas em concreto, perguntarão os que ainda não a leram, de que trata a segunda carta encíclica de Francisco?
Colocando-se em linha com os argumentos dos que defendem que enfrentamos riscos sérios de colapso geral da sociedade humana – como escreve Francisco na exortação apostólica Laudate Deum, publicada em outubro de 2023, lembrando a ironia fina do filósofo Vladimir Solovyov, “um século tão avançado que teve a sorte de ser o último” –, a carta encíclica Laudato Si’, com o sugestivo subtítulo “Sobre o cuidado da nossa casa comum”, examina com minúcia a situação do nosso mundo. Pugnando pelo que designa por “ecologia e progresso integrais” – na perspetiva de Francisco não existem duas crises mas apenas uma, socioambiental –, o documento denuncia com veemência a poluição, os desperdícios e os resíduos tóxicos, consequência de uma “cultura do descarte, que afeta tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo”.
Se a quisermos ler a partir de conceitos-chave que se desenvolvem em argumentos demoradamente analisados por Francisco, podemos também mencionar “rapidación” e “sobriedade”. Ambos estão no centro do debate em torno do decrescimento. Embora este conceito e proposta de mudança social e política não seja explicitamente mencionado na Laudato Si’, ele atravessa boa parte das páginas da carta encíclica. “Peça-chave” no debate sobre a imaginação de alternativas ao sistema que produz “a economia que mata”, o decrescimento propõe a rutura com as lógicas produtivistas e do crescimento económico a todo o custo, sem considerar os impactos desta intensificação nos ecossistemas e na própria vida humana. Dando a palavra a Francisco, “o ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida actual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões”.
Colocando-se assim em contradição com a viabilidade ecológica do planeta, a intensificação do consumo ignora que muito do que é consumido em nada contribuiu para o bem-estar material dos seres humanos. Por isso, o decrescimento recusa a existência de uma afinidade entre consumo e “vida boa”, pelo que no debate deverá ser considerado um compromisso social e político que coloque a efetiva possibilidade de se trabalhar e consumir menos para viver melhor, eliminando atividades perversas, porque ambiental e socialmente destrutivas, como é a publicidade e todas as suas expressões, incluindo no campo académico (v.g., ensino de marketing e de comunicação publicitária). Algo não muito diferente sugere Francisco, quando nos diz que “a espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo. É importante adoptar um antigo ensinamento, presente em distintas tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção de que ‘quanto menos, tanto mais’”. Tal convoca a noção de sobriedade, central nas teses decrescentistas e fundamental para reestabelecer o metabolismo entre a sociedade e a natureza. Com precisão certeira, Francisco argumenta que “a sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sabem alegrar-se com elas”.
Se para muitos de nós, certamente também para o Papa Francisco, não existem dúvidas de que o mundo está à beira do “suicídio coletivo”, convocando as palavras de António Guterres em julho de 2022, no encontro em Berlim para o diálogo climático, resta saber se temos saída. Lemos na Laudato Si’ que “os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, […são] um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos”, afirma Francisco. Repito: será que existe uma saída, outro rumo, como exige o Bispo de Roma? Gostaria de ter a mesma esperança de Francisco, quando nos convida “a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas.” Note-se que esta esperança não impede o Papa de sinalizar a existência de situações de rutura, ao salientar que o “actual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da acção humana”.
Fazendo o contraponto à esperança papal, Viriato Soromenho-Marques argumenta que “não é verdade que exista qualquer solução, ou via nesse sentido, para a crise ambiental, incluindo as alterações climáticas. Temos uma montanha de palavras, impressas e ditas, apagadas por um mero sopro da realidade.” (nota 3) Atendendo aos problemas produzidos pela marcha acelerada da “locomotiva” da história que nos leva para a catástrofe ambiental, talvez antes dela para uma outra catástrofe, a da guerra nuclear, temos fundadas razões para dar livre curso ao pessimismo. A situação é desesperada. Recorrendo à linguagem aeronáutica, o nosso planeta pode já ter ultrapassado V1, a velocidade a partir da qual já não é possível interromper a descolagem, pois não há mais pista suficiente para parar em segurança a aeronave. Ou seja, como argumenta Jorge Riechmann (nota 4), vamos em direção ao colapso. Apesar de tudo, nem tudo poderá estar já jogado. Como argumentei em texto recente (nota 5), o desafio passa por converter a situação desesperada em que nos encontramos numa possibilidade para que o tempo presente, o das nossas vidas, não seja também o do fim da história humana, embora seja já o tempo, sem paralelo na história da vida, da extinção em massa de espécies animais e vegetais. Por outras palavras, como bem nos mostra Francisco com a Laudato Si’, é preciso que, perante a catástrofe como possibilidade bem real, se possa encontrar uma saída decente para a humanidade, que terá também de ser para todos os outros seres vivos e para o próprio planeta.
*este texto foi escrito ainda durante o Pontificado do Papa Francisco
Nota 1 Cf. https://www.ihu.unisinos.br/590042.
Nota 2 Todas as citações da Laudato Si’ foram retiradas da edição da responsabilidade da Tipografia Vaticana.
Nota 3 Cf. https://www.dn.pt/opiniao/o-futuro-e-os-seus-inimigos.
Nota 5 Ribeiro, Fernando Bessa (2024), “Crise e a catástrofe como possibilidade no ‘habitáculo duro como o aço’”, in Fernando Diogo et al., Coesão social, cidadania e sustentabilidade. Vila Nova de Famalicão, Húmus, 11-30.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.